A vida por um fio: mulheres escalpeladas encontram acolhimento e tratamento

Por Fernando Gurjão, especialmente para a Troppo + Mulher

Na última semana, a despedida inesperada a um dos maiores comunicadores do Brasil, Gugu Liberato, trouxe à tona uma história, que poucos conhecem a respeito da ORVAM, ONG que cuida de vítimas do escalpelamento. O apresentador foi um dos grandes incentivadores da ONG e batalhou muito para que essas mulheres, dentre as quais, Katia e Regina, encontrassem dignidade por meio de acolhimento, tratamento e aceitação. A convite da Troppo + Mulher, o escritor Fernando Gurjão foi ao encontro delas e conta melhor essa história para nós – narrada em primeira pessoa e com muita emoção.

Conheci Kátia em um evento promovido pela Diretoria da Festa do Círio de Nazaré, voltado às mulheres mastectomizadas e escalpeladas. Kátia, também chamada Kamassura pelo povo Apurinã, do qual faz parte, é vítima de um dos mais cruéis acidentes que povoam a vida nos rios da Amazônia: o escalpelamento. 

O relato chama atenção pelo silêncio quase absoluto que envolve a questão. Tirando algumas breves e pontuais campanhas de conscientização, ainda ocorrem escalpelamentos com certa frequência. Quanto mais profundo nos rios e furos, mais silencioso o sofrimento e isolamento. 

Kátia lembra de quase tudo do dia do acidente. Estava no barco de um amigo da família, indo para Lábrea, no Amazonas. Eram ela, o pai e o tio, numa viagem que faziam frequentemente para comprar mantimentos, quase sempre em barquinhos frágeis e inseguros, que nem se sabe como navegam. A cada marola ficava tudo cheio de água. Ela lembra que, no trajeto, foi servida uma sopa de peixe. O pai brincou e disse: “quem tirar mais água do barco fica com o pedaço maior”, e ela, na ânsia do divertimento, não pensou duas vezes - catou uma vasilha e correu para o fundo do barco para ganhar o prêmio.

Antes que pudesse perceber, sentiu algo agarrando seus cabelos e a mergulhando nas águas barrentas do Purus que se acumulavam no porão. Ao invés de tirar a água, se tornou parte dela. Sabia que o eixo do motor a tinha pegado, igual fazia a escova da mãe quando a penteava. Para ela, naquele momento, bastaria que o eixo “escovasse” no sentido contrário para o agarramento acabar.
De repente, o pai também estava na água com uma faca na mão, angustiado e tenso para tirá-la dali. Sentiu quando ele cortou a orelha, mas não teve dor. Quando terminou o salvamento, ele a colocou no colo e então ela viu a água barrenta acumulada no fundo do barco cheia do vermelho do seu sangue. Ela lembra de pedir que pegasse seus cabelos, que boiavam no meio do pesadelo, e depois não lembra de nada. Apagou. Isso foi em 1982 e ela tinha 9 anos.

Segundo dados divulgados pela Marinha do Brasil, na Amazônia, foram quase 90 casos de escalpelamento registrados entre 2010 e 2019. Desse total, 60% são crianças. Uma estatística cruel e desumana, especialmente com quem está começando a vida. E, em esmagadora maioria, mulheres, com seus longos cabelos. Tal como a própria Katia, vitimada aos 9 anos de idade. Quando se trata de analisar o impacto de acidentes desta natureza, em uma região onde os rios pulsam feito veias e as pequenas embarcações são responsáveis pela movimentação dessa vida, o caso merece atenção – tanto que a própria Marinha encabeçou uma grande campanha, há alguns anos, de mobilização para conseguir cobrir os eixos dos barcos. 

Kátia ficou internada no hospital de Lábrea durante meses, até ser transferida para Manaus, onde havia maior estrutura, mas jamais teve apoio definitivo de ninguém. Depois da alta, a família abandonou de vez a beira o rio e foram morar em Lábrea, perto do hospital mais próximo. Apesar da deformação e das chagas permanentes na cabeça, que nunca saravam, ela teve uma infância quase normal de brincadeiras e convivências. Tudo mudou quando entrou no colégio, já perto dos 15 anos, e se deparou com a crueldade dos adolescentes. Embora fosse bullying, Katia não sabia que esse tipo de prática tinha nome. Na época, era “só” crueldade mesmo. Era diário a chamarem de careca, feia. Monstro. Os meninos arrancavam seus lenços - qualquer tecido que usasse para esconder e proteger as feridas - e faziam bola de futebol e davam tapas na carne nua. 

Ela aguentava tudo sem qualquer apoio. O pai, apesar de ter alguma instrução, dizia que ela devia se conformar, pois era careca mesmo e a vida era assim. Ela calava e engolia a dor, pois era o que restava. Mas, por duas vezes, tentou se vingar. A confusão foi tanta que abandonou os estudos e se trancou em casa, porque ali a dor era menor. Já adulta, casou. Tem dois filhos, mas nunca se sentiu completamente integrada a algo. As agressões que recebia do marido eram diárias. Com a cabeça deformada, se conformava, pois achava que não havia vida diferente daquela. Por diversas vezes inventou doenças, chegou até a provocar um corte no pé para deixar de sair com o marido para uma festa importante. Achava que ia envergonhar a ele, que ia chamar a atenção, que seria maltratada. No auge de não mais aguentar, tentou dar um fim em tudo e, por sorte, não conseguiu, mas ficava em casa, isolada de tudo, e, com o tempo, o casamento acabou. 

Em 2018, Kátia descobriu a Organização Não Governamental dos Ribeirinhos e Vítimas de Acidente de Motor – ORVAM, que funciona em Belém. Viu que havia uma parceria entre a ONG e a Santa Casa de Belém, e que eles buscavam encontrar um tratamento mais eficaz para as mulheres escalpeladas. No início, diante daquele fato, ela pensou se tratar de alguma espécie de fraude [“igual fazem com os velhinhos”, comenta entre risos], mas uma amiga em Rondônia a encorajou a ir ver. A amiga deu as passagens para Belém e fez um combinado. “Você vai. Se perceber que é golpe, diz que vai lanchar, entra num táxi, me liga e corre pro aeroporto. Te mando passagem de volta na mesma hora”, disse a amiga.

A desconfiança é explicável, eis que Kátia jamais imaginou que houvesse outras escalpeladas iguais a ela. Apesar da violência sofrida, nunca escutou falar de outras mulheres na mesma situação. Katia chegou a Belém, conheceu o trabalho da ORVAM e ficou. Desde março de 2019 ela mora no Espaço Acolher, da Santa Casa de Misericórdia, em Belém, que atende meninas vítimas de escalpelamento. Também faz tratamento na Santa Casa, tudo bancado pelo SUS, da hospedagem, alimentação, até medicamentos que eventualmente precise. Na ORVAM, ela recebe apoio para seguir lutando.

Com brilho nos olhos, Kátia diz que Belém mudou sua vida. Somente em 2019 descobriu que não era uma aberração, muito menos um monstro. Descobriu que foi vítima silenciosa de muitos descasos. No Espaço Acolher ela percebeu que pode ajudar muitas outras meninas que sofrem do mesmo problema. Ela se sente útil, dá conselhos, fala sobre as crueldades do mundo e dá força nas caminhadas individuais. Sente que se tornou um exemplo para as mais novas. E afirma que pela primeira vez se sente em casa, porque, por vezes, mesmo em casa, ao lado da família, se sentia uma estranha. O tratamento é complicado, é dolorido. Basicamente, foi implantado um expansor sob a pele da cabeça, uma bolsa onde é injetado líquido de tempos em tempos. O objetivo é aumentar a área de pele para, futuramente, conseguir cobrir as chagas. Porque, com a pele arrancada, a cabeça ficou vulnerável, então frequentemente ela tem infecções e as feridas ficam em carne viva. Tomar banho é o pior, pois, por vezes, a própria água maltrata. Antes de vir para Belém, fazia quase três anos que ela dormia com a cabeça para fora da cama, porque era a única forma de dormir sem dor. 

Um trabalho valoroso

Poucas pessoas conhecem sobre as escalpeladas, principalmente fora dos rios da Amazônia; o número de casos diminuiu após sucessivas campanhas de prevenção, mas ainda ocorrem acidentes, principalmente perto do período de férias, quando as travessias de barco aumentam nas principais vias de locomoção da região. Tudo seria resolvido com a instalação de uma simples proteção de eixo, uma espécie de calha que cobre o eixe e evita o contato com os cabelos ou roupas, por exemplo. O principal grupo de acidentadas são mulheres novas, que ainda desconhecem o risco, ou evangélicas, por conta dos cabelos longos. 

A ORVAM, hoje referência no atendimento de mulheres escalpeladas, surgiu de forma surpreendente. E como poucas pessoas conhecem essa história, me permitam: era 2011. Uma escalpelada escreveu ao apresentador Gugu Liberato, contando sua história e pedindo uma singela peruca. O apresentador, tocado com a história, resolveu fazer mais: veio a Belém, conheceu de perto a realidade das mulheres e sugeriu a criação de uma ONG. O município ofereceu o terreno e o apresentador ergueu prédio e deu toda a estrutura jurídica e logística. Depois, Gugu trouxe um famoso cabelereiro de São Paulo, Luiz Crispim, que ofertou oficina de confecção de perucas às mulheres escalpeladas. 

Até hoje a ORVAM produz suas próprias perucas, e ainda comercializa, principalmente para  mulheres em tratamento contra câncer. Somente uma das escalpeladas, Regina Formigosa, participante da 1ª oficina com Crispim, já produziu mais de mil perucas. Acidentada aos 22 anos, em Muaná, Regina se dedica à arte de devolver às mulheres escalpeladas um pedaço importante de sua autoestima, arrancada de forma bruta pelo eixo de motores ainda descobertos. 

A ONG atende atualmente 152 mulheres vitimadas por escalpelamento, de diversos Estados da região. Não há números precisos que englobem toda a Amazônia, em problema ainda silencioso e cruel, que marca fundo mulheres tão precocemente aterrorizadas pela realidade.

Para conhecer mais e ajudar:
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