CONTINUE EM OLIBERAL.COM
X

A metade apartada

O assunto é tão incômodo quanto doloroso: perda gestacional ou, como habitualmente é falado, “aborto espontâneo”

Lorena Filgueiras
fonte

O assunto é tão incômodo quanto doloroso: perda gestacional ou, como habitualmente é falado, “aborto espontâneo”. Carregado de estigma e muita culpa, o tema merece ser discutido e falado, à luz da necessária humanização do tratamento dispensado às mulheres que vivenciam essa experiência tão marcante e sofrida. 

Gostaria de começar esse texto pedindo desculpas. Nestes tempos em que o ‘lugar de fala’ é tão indispensável à compreensão e, por conseguinte, ao bom debate, eu, que não sou mãe, senti uma enorme necessidade de trazer à tona um assunto dolorido: a perda gestacional. Espero que me perdoem – mães e mulheres que passaram por tamanha dor –, mas recentemente, uma carta pública da modelo Chrissy Teigen me quebrou por dentro. 

Grávida e na metade da gestação, Chrissy atravessou o período gestacional com um problema na placenta, que a levou a ter que fazer inúmeras transfusões de sangue e de fluidos para segurar o bebê. Infelizmente, não funcionou e o pequeno Jack [o bebê já tinha nome] não resistiu. "Nunca escolhemos os nomes dos bebês até o último momento possível, depois que eles nascem e antes de deixar o hospital. Mas, por alguma razão, comecei a chamar esse carinha na minha barriga de Jack. Então, ele sempre será Jack para nós. Jack se esforçou tanto para ser parte da nossa pequena família e ele será, para sempre”, escreveu Chrissy em sua rede social, no último dia 1 de outubro. 

As fotos que compõem o post de desabafo e despedida ao bebê são muito emocionantes. A primeira mostra Chrissy às lágrimas, sentada na cama do hospital, para receber analgesia, de modo a concluir o procedimento cirúrgico. Numa outra imagem, ela carrega o filho, sem vida, no colo. O marido, o cantor John Legend, que está ao seu lado, beija o bebê natimorto. 

Sou uma crítica ferrenha da exposição demasiada nas redes sociais – acho bem estranha essa compulsão pelo registro impactante; o vídeo inédito... preterindo o socorro à vítima. Houve quem achasse o post da modelo/apresentadora um excesso... desculpem, mas eu não achei não. Teigen encontrou uma maneira de lidar com o luto e o modo como ela o fez serviu, entre tantas outras coisas, para fazer com que nós, imprensa, médicos, enfim, a sociedade em geral, pudéssemos olhar com mais humanidade para essa dor invisível. Há muita violência e machismo nas ocasiões em que uma mulher precisa de acolhimento. Não desprezemos o fato de que a interrupção de uma gravidez é algo que impacta profundamente uma mulher – seja ele espontânea (a perda gestacional) ou não (um direito das mulheres e obrigação do Estado). Pra mim, o gesto corajoso de Chrissy foi um manifesto, porque, convenhamos, a palavra “aborto” vem muito carregada de estigmas... e mesmo quando “espontâneo”, ela enche a mulher de culpa – mesmo não tendo qualquer poder de reversão sobre a situação, a sociedade incapacita e responsabiliza essa mulher, preenchendo-a de uma vergonha absurda.

Lembro de uma noite, aos meus 9 anos, em que vi uma mulher da minha família resistir, o máximo que podia, para não revelar as dores lancinantes de um abortamento espontâneo. Seria seu primogênito, um filho muitodesejado. Ainda tenho na memória o macacão branco-perolado, em tricô, que ficou ali, encostado. Como não coubesse mais em si de tanta dor, a casa foi acordada. Havia sangue e depois não me recordo de muita mais. Ou melhor, lembro do vazio e da atmosfera densa, da sensação de que a perda era um tema proibido. E foi, sim, por algum tempo. Aconteceu com ela e com outras amigas queridas, que preferiram manter o silêncio e seguir, como se nada tivesse acontecido, a ter que confrontar uma censura velada de quem ouve a palavra “que não pode ser dita”.

A essa altura do texto, você, leitora ou leitor, pode estar se perguntando: “mas, afinal, qual a causa?”. São tantas! Uma amiga, que perdeu o bebê aos 4 meses de gestação, tinha a dieta perfeita. Alimentava-se bem, teve o privilégio de contar com um pré-natal exemplar, reposição vitamínica, enfim, a condução da gravidez foi perfeita. Em tese, “não haveria motivo”. Mas houve algum, indeterminado. 

Somos atravessados por toda uma cultura!

A médica obstetra Isadora [o nome foi trocado, a pedido da mesma, para preservar sua intimidade], em 2011, ficou grávida inesperadamente. Cercada de mulheres que a apoiaram, Isadora foi “se maternando”, como ela mesma define. Aos 4 meses, evoluiu para uma perda gestacional espontânea. “Eu me tratei como se eu fosse uma paciente. Fui bem técnica e me afastei afetivamente do processo”, conta. “Fui bem recebida por minhas amigas no hospital e no serviço burocrático. Não tive a mesma sorte no casamento. Foi um momento difícil e nos magoamos muito!”, continua. 

Isadora foi realizar o procedimento cirúrgico da curetagem e passou por diversos efeitos da anestesia. Ela não quis ver o bebê. “Não quis me conectar. Me distanciei de mim da mesma forma que me distanciava afetivamente das mulheres que eu atendia. Lembro que na mesma época, eu estava batizando um sobrinho bem novo e eu não fui poupada: nem por mim mesma, nem por ninguém da família. Ninguém, e eu me incluo, respeitou meu sofrimento. Estava em um batizado com cólica, sangramento pós-aborto e sofrida. Empurrei tudo para um canto bem escondido na gaveta e banquei à madrinha. Cinco meses depois, quando eu deveria estar parindo, me veio o primeiro vazio da depressão. Todo esse processo me adoeceu muito. Fui fazer terapia e levantei, nesse momento, um de meus maiores traumas vividos: abuso sexual na infância. Não foi fácil. Fui e voltei para a terapia inúmeras vezes. Aprendi, a duras penas, que eu precisava estar bem para cuidar de alguém e essa oportunidade não é dada para nós, mulheres, em uma maternidade compulsória. ‘Escolher’ é um verbo conjugado pelas pessoas com privilégio. Ainda assim, foi bem difícil”, revela.

“Algum tempo depois, fiz uma consulta sobre constelação familiar e a psicóloga me orientou que eu me despedisse do filho de forma simbólica. Descobri que havia feito isso, por meio de um texto, publicado em uma rede social, quando anunciei minha segunda gravidez. Só aí eu abençoei tudo o que passei e fiquei grata por todo o tratamento que eu me permiti passar”. 

É preciso que se diga agora que não há protocolos formais, que versem sobre a humanização, em casos de perda gestacional. “Na declaração de óbito, o bebê não recebe um nome. Colocam ‘natimorto de fulana de tal’. Esses bebês têm família, uma história, um nome. Além disso, alguns hospitais não estão preparados para separar pacientes que tiveram perda gestacional daquelas que tiveram bebês. Às vezes, é um óbito fetal, porque não se pode considerar um aborto um bebê de 9 meses que nasceu morto”, diz uma outra profissional da área, que prefere não ser identificada. “Muitas vezes, não é sequer permitido que a mãe tenha um momento com o bebê morto. Um momento para vivenciar o luto. O protocolo estabelece que levem o bebê imediatamente, que seja empacotado e mandado ao necrotério. As mães, depois de uma experiência assim, têm vergonha de falar a palavra ‘aborto’, que é o termo que designa a perda gestacional de bebês com menos de 500 gramas, ou menos de 5 meses. Há um forte estigma religioso, social. Embora muita coisa não conste em protocolos institucionais, faz parte uma conversa com a equipe operacional, em respeito àquela mãe e à sua privacidade. Dor, sofrimento, analgesia são tratados como elementos de um parto bem-sucedido. É uma dor absurda e não se cogita, por exemplo, analgesia a uma mulher que perde um filho. Quando isso ocorre, como ocorreu com a ChrissyTeigen, é um tratamento humano, digno”, conclui.Ou seja, analgesia em qualquer parto, seria uma vitória.

Voltemos à Isadora, que passou a ser uma outra profissional. 

“Depois dessa experiência, eu mudei completamente a minha assistência [o trabalho como médica], no sentindo de que eu não estava atendendo apenas uma paciente: estava eu atendendo uma mulher que vivia uma situação muito parecida com a minha. Passei a me conectar afetivamente e aprendi a falar, me comunicar. Quando atendia mulheres, que perdiam bebês com mais tempo que o meu, passei a perguntar se gostariam de carregá-lo, de fazer foto ou de molhar o pezinho dele na esponjinha de carimbo para ter essa imagem. Várias histórias apareceram para mim, à medida em que eu me abri a elas”, afirma.

“Existe um estigma relacionado a tudo que diz respeito à mulher. A maternidade é um momento de muita fragilidade e que, obviamente, quem nunca sentiu a mão pesada do machismo, de uma situação de descriminalização e julgamento, sente pela primeira vez. Quando lidamos com abortamento – provocado ou espontâneo – precisamos compreender que aquela mulher foi mãe, não importa se foi por 4 semanas ou por 18 semanas, 8 meses, 9 meses. Eu busquei me capacitar dentro da ‘comunicação não-violenta do mau resultado’. Passei a entender que todas, todas as mulheres enlutam. Não existe mulher que saia bonita e saltitante, mesmo depois de uma decisão própria ou a partir de um desfecho. Há violências que são cometidas falando baixo, de maneira carinhosa. Os abusos vão ficando cada vez mais sofisticados e as pessoas naturalizam essas violências”, conclui.

Os pesos dos termos

A psicóloga Dara Collyer, especialista em psicologia da saúde e hospitalar/especialista em desenvolvimento infantil, atua há 19 anos e explica que aborto é a interrupção da gestação em período anterior a 22 semanas, quando o feto, geralmente, possui peso inferior a 500 gramas e possui condições incompatíveis com a vida ao ser retirado do útero. “Já os termos ‘morte fetal’, ‘perda gestacional’, ‘óbito fetal intrauterino’, ‘luto perinatal’ compreendem a morte do feto antes da expulsão ou extração completa do corpo materno independentemente do período em que estava a gestação e/ou peso do feto”.
“Penso serem estes últimos termos citados, os mais abrangentes e, portanto, mais compatíveis com a realidade sobre a qual verso o meu fazer, enquanto Psicóloga, focando na subjetividade desta vivência de perda. Mas compreendo que, tecnicamente, o termo aborto será utilizado para se referir a parâmetros específicos, como os estabelecidos pela OMS.A questão principal aí é a forma como cada profissional irá abordar o fato em si (perda) junto à cada mulher e família que as assistirem. Nesta interação, a habilidade relacional deve se sobrepor à habilidade técnica, reconhecendo e validando a importância daquela vida perdida, independente de tempo gestacional, peso ou qualquer parâmetro mensurável, uma vez que estamos diante de uma perda, e consequentemente dor, imensuráveis para aquelas pessoas”, inicia.

image Psicóloga Iassodara Collyer (Acervo Pessoal)

Como ajudar essa mulher a lidar emocionalmente com uma perda tão dolorida? 

“Primeiramente compreender e validar o significado daquela vida perdida para a mulher que vivencia a situação de perda gestacional e sua família. Pois, o que comumente se observa são atitudes que menosprezam o fato e as reações emocionais da mulher neste momento, pelo fato de o bebê ‘não ter nascido ainda’, por esta mulher, enquanto mãe, não ter tido contato extrauterino com o filho e, portanto, não ter tido uma ‘vinculação maior’, principalmente se a perda ocorrer nas primeiras semanas de gestação, nas quais pouco se visualizam as modificações corporais, como o crescimento da barriga. Percebe-se, portanto, que além da dor pela perda gestacional vivenciada, a mulher tem que lidar com significativo sofrimento causado por aqueles que não atribuem ao filho morto o statusde pessoa. A perda é, nestes casos, menosprezada e a dor da mulher não é então reconhecida; o que tende a fragilizar seus recursos internos para enfrentamento de tão dolorosa situação.O luto desta mulher precisa, portanto, ser socialmente reconhecido, aceito, validado. Deve se favorecer, com empatia, um espaço para a elaboração simbólica do momento, acolhendo a livre expressão de sentimentos da mulher; o que tende a contribuir para o processo de elaboração da perda por ela vivenciada.Lembrar sempre que a perda gestacional significa para a mulher (e familiares), a interrupção de sonhos, esperanças, expectativas existenciais para si e para o mundo após o nascimento esperado.  Se tivermos esta compreensão, certamente nossas condutas irão ao encontro do acolhimento devido a esta mulher e família”, diz Dara.

O que não se deve falar para uma mulher que perdeu um filho? 

“Compreendo que existam, como falado anteriormente, pessoas que não validam a perda da mulher e agem, portanto, de forma não-empática e até mesmo agressiva. Mas também é comum as pessoas adotarem, em momentos como este, falas inadequadas em função da própria angústia e inabilidade diante de momentos adversos extremos, como o de morte/perda. Mas, sim, vale lembrar que não devemos adotar tentativas de negação, racionalização e convencimento, como: ‘você é jovem’, ‘logo tenta de novo’, ‘vai ter outros’, ‘ainda estava tão no início’, ‘seja forte’. Com atitudes como estas, as pessoas tentam silenciar, conter o sofrimento da mulher. Mas, como também falei anteriormente, a minimização – ou até desconsideração – deste sofrimento tende a dificultar o processo de luto materno, além de, geralmente, fazer essa mulher se sentir incompreendida e seu bebê não-valorizado pelas demais pessoas. Podendo, inclusive, a mulher manifestar outras reações emocionais a partir de então, como raiva e consequente isolamento social. E sabe se que a rede de apoio familiar e social é suporte fundamental para o enfrentamento e elaboração da perda vivenciada. Devemos, portanto, fortalecer esta rede de apoio!”, finaliza a psicóloga.

Isadora, a médica, complementa: “não diga ‘ah, pelo menos, você está bem de saúde’, ‘se você o perdeu, é porque ele tinha, provavelmente, alguma deficiência e o corpo te ajudou a expelir’. Não importa quão ‘carinhoso’ você seja, ao dizer isso: você está cometendo uma violência contra aquela mulher. Evite o ‘pelo menos’. Temos que acolher. Mesmo não sendo fácil e diante da falta de melhores palavras, é importante explicar e acolher”. 

O bebê que Isadora perdeu, voltando à questão dos direitos negados ao filho e à mãe, foi embora sem nome. Seria Isadora, se fosse menina, nome escolhido por nossa entrevistada, que prefere se preservar. Há uma negação, do ponto de vista legal a essas crianças e mães. Em São Paulo, algumas mães conseguiram esse direito e os bebês foram enterrados dignamente. “Como isso impacta. Uma vez, assistindo a um documentário, me chocou muito o que uma mãe disse: quando uma mulher perde o marido, ela se torna viúva; quando um filho perde o pai, ele se torna órfão [Isadora faz um silêncio prolongado aqui. Compreendo que ela está muito emocionada e eu também silencio]... mas quando a gente perde um filho, nem nome a gente tem. Nossas perdas são invisíveis socialmente. Não são reconhecidas e, a partir do momento em que nada disso é reconhecido, não nos é oferecido nenhum tipo de amparo. Tudo que falei para você, até agora, fala de desamparo à mulher, na saúde, dentro da família, dentro do serviço jurídico. Quando a mulher provoca o aborto, esse desamparo é ainda maior. Somos atravessadas por inúmeras violências, de todas as naturezas. Tá faltando a gente mudar muita coisa!”.

Falta sim. Falta humanidade (e muitas políticas públicas) para compreender que a mulher ao lado sofre.   

Para conhecer mais:
@grupocolcha

Entre no nosso grupo de notícias no WhatsApp e Telegram 📱

Palavras-chave

Troppo
.
Ícone cancelar

Desculpe pela interrupção. Detectamos que você possui um bloqueador de anúncios ativo!

Oferecemos notícia e informação de graça, mas produzir conteúdo de qualidade não é.

Os anúncios são uma forma de garantir a receita do portal e o pagamento dos profissionais envolvidos.

Por favor, desative ou remova o bloqueador de anúncios do seu navegador para continuar sua navegação sem interrupções. Obrigado!