Julgamento no STJ reacende debate sobre 'herança digital' no Brasil
Brasil ainda não tem legislação para o tema

Muitas pessoas planejam deixar para familiares e amigos parte do que construiu como patrimônio em vida como carros, imóveis, jóias, aplicações financeiras, entre outros, mas o que acontece com seu legado digital? Um julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), iniciado no mês passado, sobre o acesso a bens digitais em inventário acentua a urgência de regulamentação e reforça a relevância do “inventariante digital” como ferramenta jurídica emergente na sucessão digital.
O advogado especialista em direito de família Alisson Guimarães explica que o debate é fundamental para aprimorar a legislação, a vontade do inventariante e a preservação da intimidade no ambiente virtual mesmo após o falecimento. “Hoje em dia, a herança digital é um dos grandes desafios no direito de família, justamente porque a lei brasileira ainda não trata disso de forma clara. Quando alguém falece, não deixa só bens materiais, mas também perfis em redes sociais, contas em plataformas, arquivos em nuvem, até moedas digitais ou canais que geram renda.”
O especialista também conta que essas novas formas de patrimônio no ambiente digital ainda são motivos de muitas dúvidas de familiares que não sabem o que fazer com esse “legado digital”. Para ele, o ideal é deixar tudo documentado com informações de acesso, valores e demais bens no ambiente digital. “ O problema é que a família muitas vezes não tem acesso a senhas ou não sabe como lidar com esses conteúdos. Pode haver discussões entre herdeiros sobre manter ou apagar um perfil, transformar em memorial ou até dividir os valores que vêm dessas plataformas. Empresas como Google, Facebook ou Apple também exigem ordem judicial para conceder acessos, o que complica ainda mais. Por isso, já é recomendável pensar em testamento, para que os familiares não fiquem nessa situação delicada.”
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O julgamento no STJ pode ter dado um passo importante para o aprimoramento da interpretação jurídica sobre “herança digital”. Em audiência inédita da 3ª Turma, relatado pela ministra Nancy Andrighi, os ministros discutiram como incluir bens digitais nos processos de inventário. Dentre as propostas foi debatido a figura do “inventariante digital”: um profissional responsável por acessar com sigilo os conteúdos online do falecido, listar os ativos e apresentar um relatório ao juiz. Caberá ao magistrado definir o que pode ser transmitido aos herdeiros e o que deve ser preservado por envolver dados pessoais.
Para o advogado, esse cuidado preserva a intimidade e define uma partilha de bens justa. “Acho a ideia de nomeação de um “inventariante digital” excelente. Ele seria um especialista de confiança do juízo (que julga o processo) e seria nomeado para acessar o conteúdo digital sob sigilo.”
O ambiente online, assim como ocorre no mundo físico, comporta aspectos nitidamente econômicos, de caráter patrimonial, assim como outros ligados inteiramente aos direitos da personalidade, de natureza existencial. Por isso, é adequada a construção de duas categorias de bens: os bens digitais patrimoniais e os bens digitais de carácter emocional.
O criador de conteúdo, Carlos Dias, ainda desconhece o assunto, mas afirma que tudo deve ser dialogado internamente entre a família sem a necessidade de interferência jurídica. “Nunca parei pra pensar nisso a fundo. Meu primeiro pensamento sempre é que tudo deve partir de um acordo e não de uma obrigação. Pensar em legislar sobre isso de imediato soa mais como restrição do que como preservação.”
No Instagram, empresa do grupo Meta, existe uma opção de solicitar a transformação de uma conta em memorial, que preserva as postagens, mas impede o login e futuras interações. A rede social orienta que caso alguém queira gerir a conta, é importante a indicação do contato em um testamento, onde também se pode deixar a informação de login para acesso após a morte da pessoa. No Facebook, do mesmo grupo, é possível adicionar, alterar ou remover o contato herdeiro na Central de Contas a qualquer momento. Após o falecimento do titular, esse contato passa a gerir o perfil. Outras redes sociais como Tiktok, X (antigo twitter) e Youtube não possuem essa ferramenta para adicionar um “contato herdeiro.”
Para muitas pessoas as mídias digitais são ferramentas de trabalho e fonte de renda, assim como o crescimento do uso de moedas digitais e arquivos online. Apesar de seu valor econômico ou afetivo, esses bens ainda enfrentam lacunas no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no campo das sucessões.
No congresso, o Projeto de Lei (PL) n° 6468, de 2019 busca regulamentar a chamada “herança digital”. Na última atualização o PL tinha passado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, mas segue aguardando relator desde 2021. A matéria reconhece essa nova realidade ao incluir, sob a denominação de “patrimônio digital”, ativos intangíveis com valor econômico, pessoal ou cultural. Criptomoedas, perfis monetizados e conteúdos com valor sentimental passam, segundo a proposta, a ter previsão expressa de transmissão por herança.
Enquanto o Código Civil em vigor não contempla essas especificidades — tendo sido formulado há mais de duas décadas —, o debate sobre herança digital torna-se imprescindível.
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