Mudanças climáticas: o fator Amazônia

Glasgow, na Escócia recebe a 26ª edição da Conferência das ONU sobre Mudanças Climáticas. Especialistas explicam porque a floresta tem papel decisivo para o debate

Ana Carolina Matos / O Liberal

A discussão sobre as variações climáticas, motivadas pela ação do homem em todo o globo, vem ganhando fôlego nas últimas décadas. Pesquisas têm lançado alertas mais alarmistas, em tom de ultimato a autoridades do mundo inteiro, tratando da necessidade de um comprometimento maior com as ações ambientais responsáveis. A partir de hoje (31), quando tem início a agenda da COP 26 - a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2021 -, os desafios ambientais e o desenvolvimento sustentável na Amazônia também voltam à vitrine, por suas várias relações com o debate do futuro do clima em todo o globo. A 26ª edição da conferência da ONU segue até o dia 12 de novembro, na cidade de Glasgow, na Escócia. Terá a participação de líderes de 196 países. E discutirá, mais uma vez, o balanço dos avanço de esforços mundiais no enfrentamento ao aquecimento global.

Ouça o comentário desta reportagem em inglês:

Temperaturas mais altas e secas na Amazônia

No início de agosto, o sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês) indicou que a ação do homem já é responsável pelo aumento de cerca de 1,1 ºC na temperatura média do planeta - um impacto irreversível, conforme foi apontado, pela primeira vez, em 2021. Ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), o painel apontou, no documento "Climate Change 2021: The Physical Science Basis", que a "temperatura da superfície global aumentou mais rápido desde 1970 do que em qualquer outro período de 50 anos pelo menos nos últimos 2 mil anos". Além disso, só na última década (2011-2020), as temperaturas excederam os períodos mais quentes de cerca de 6.500 anos atrás.

 

O levantamento do IPCC alerta ainda que, nos próximos 20 anos, o aquecimento global deve atingir - e até ultrapassar - 1,5º C. Em escala nacional, a temperatura no Brasil pode subir entre 4ºC e 5ºC nas próximas décadas. E é provável que a região amazônica enfrente maiores secas e uma maior incidência de temperaturas máximas superiores a 35°C, em no mínimo 60 dias por ano até o final do século - o que pode ultrapassar 150 dias em um cenário mais extremo.

Mas qual a contribuição do Brasil com esta previsão nada otimista? Entidades e estudiosos apontam que o desmatamento da Amazônia é um fator de pressão para o clima global.

É o que apontam, por exemplo, os levantamentos mensais feitos pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Eles indicam que a realidade tende a piorar ano a ano. Apenas em setembro deste ano, uma área de floresta maior do que 4 mil campos de futebol foi destruída na Amazônia. Trata-se da maior devastação registrada em dez anos: foram dizimados 1.224 km², o que corresponde ao tamanho da cidade do Rio de Janeiro.

image (Tarso Sarraf / O Liberal)

Setembro foi o sexto mês de 2021 em que a Amazônia teve a maior área destruída na década: março, abril, maio, julho e agosto também registraram o pior desmatamento desde 2012. Com isso, o acumulado do desmatamento na região, de janeiro a setembro deste ano, chegou a 8.939 km² - algo similar às áreas das cidades de Roma, Paris, Moscou, Hong Kong, Nova York, Londres e Rio de Janeiro, juntas. Isso corresponde a 39% a mais do que no mesmo período em 2020. É o pior índice em 10 anos.

Amazônia: água e retenção de carbono equilibram atmosfera

Professor titular aposentado da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisador voluntário do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, Antônio Lôla explica que o desmatamento da Amazônia interfere de modo direto em dois importantes ciclos biogeoquímicos: da água e do carbono. Sobre o ciclo da água, o pesquisador aponta que, diariamente, a floresta é responsável por emitir diariamente para a atmosfera uma enorme quantidade de água: são quatro litros por metro quadrado.

image Antônio Lôla (Márcio Nagano / O Liberal)

Toda a Amazônia tem 5,6 milhões de quilômetros quadrados de área, espalhada por oito países - a porção brasileira é de 5 milhões de quilômetros quadrados. Estima-se que um total de 22,4 trilhões de litros de água são lançados na atmosfera diariamente pela floresta. É o equivalente, em volume, a 22,4 quilômetros cúbicos - o suficiente para encher, todos os dias, dez baías de Guanabara, no Rio de Janeiro, com seus dois bilhões de metros cúbicos de água.

Essa água é transportada, por meio de movimentos atmosféricos, para diferentes regiões do planeta, retornando à superfície por meio da chuva. "Qualquer alteração nesta cobertura vegetal poderá implicar em alterações nesse ciclo da água, comumente conhecido como ciclo hidrológico, proporcionando a intensificação de fenômenos como a seca ou enchentes, em diferentes locais, não necessariamente amazônicos. No caso específico da Amazônia, com o desmatamento de nossas florestas, essa quantidade de água disponível para a atmosfera tenderá a sofrer uma redução, diminuindo, consequentemente, as chuvas", detalha o pesquisador.

No caso do ciclo do carbono, as florestas funcionam como "sumidouros", retirando este elemento da atmosfera e transformando em biomassa, por meio da fotossíntese.  "Como o CO2 é um dos principais gases responsáveis pelo efeito estufa, a destruição das florestas poderá implicar no aumento da sua concentração na atmosfera. Isso aumenta o efeito estufa, o que proporcionaria também o aumento da temperatura do planeta. Caso as florestas sejam queimadas, esse efeito negativo é potencializado ainda mais. Pois, além de deixar de retirar CO2 da atmosfera, a queima libera imediatamente todo o CO2 retirado da atmosfera e armazenado na biomassa durante várias décadas", ressalta Antônio Lôla.

image (Fábio Nascimento / Greenpeace)

Questionado sobre a hipótese dos impactos em caso da dizimação total da floresta, o pesquisador é taxativo: "Seria o apocalipse". Lôla afirma que as primeiras consequências seriam os eventos climáticos extremos - alguns dos quais já vêm ocorrendo em todo o planeta.

"A frequência [dos eventos climáticos extremos] iria aumentar muito. Teríamos muito mais tornados e muito mais furacões, por exemplo, mas com uma força muito mais devastadora. Secas mais extremas, enchentes. Haveria, com isso, uma redução generalizada da produção agrícola, com aumento da fome e proliferação de doenças e pragas por conta dessa variação de temperatura”, ressalta o estudioso. “O que acontece é que existe uma interação. Tudo o que se faz no planeta tem consequência em algum lugar. Seria catastrófico", alerta.

Apenas manter a floresta em pé não resolve tudo

O biólogo Leonardo Miranda, que atualmente atua como pesquisador do Museu Goeldi, lembra que a importância da região amazônica vai além da área verde. Por isso, a preservação ambiental é um desafio muito muito maior do que parece. "O ecossistema amazônico é um sistema complexo, que não se sustenta só plantando árvores. A gente precisa de toda a complexidade que isso envolve, ou seja, a biodiversidade. É muito mais do que árvores: são os pássaros que comem as frutas e levam as sementes para outros lugares, que vão germinar. São as abelhas e outros insetos, que polinizam as plantas que vão gerar frutos e os insetos vão comer.... Ou seja, é uma cadeia de vários componentes que têm que estar interligados", enfatiza.

image Biólogo Leonardo Miranda (Márcio Nagano / O Liberal)

Por conta disso, o pesquisador defende que não adianta "manter a floresta em pé", sem dar condições para que o sistema consiga manter a própria existência. "Não adianta a gente resolver um problema agora pontual e, daqui a 10, 20, 30 anos, essas florestas não serem capazes de se sustentar”, pondera Miranda. “Porque toda a biodiversidade é associada ali dentro, faz sentido para o contexto todo. Plantar árvores é importante, mas temos que focar que a biodiversidade é muito mais que isso".

O especialista desmistifica ainda outra confusão comum quando se fala de Amazônia: a ideia de que a região é o "pulmão do mundo". Miranda pontua que, ao mesmo tempo em que a região amazônica é responsável por consumir gás carbônico, a própria floresta consome parte do oxigênio que produz.

"A importância da Amazônia é muito maior para a sociedade amazônica e para os brasileiros, em geral, do que para a regulação do clima" - Norbert Fenzl, geólogo.

"A Amazônia produz mais oxigênio do que precisa e realmente solta oxigênio na atmosfera. Mas não pode ser considerada o pulmão do mundo. Se a gente for contabilizar esse potencial de diferencial, a gente vai ver que, na verdade, as algas, o fitoplâncton nos oceanos, liberam muito mais oxigênio do que o que eles usam. Então, na verdade, o pulmão do mundo está nos oceanos, e não na floresta amazônica”, esclarece o pesquisador. “O que a gente fala hoje em dia é que, se a Amazônia não é mais o pulmão do mundo cientificamente falando, ela pode ser considerada o sistema circulatório, já que a região não é só um absorvedor de carbono, mas também um bombeador de água para a atmosfera", detalha.

Cenários socioeconômicos incidem sobre o planeta

Pesquisador e professor titular do Núcleo de Meio Ambiente (NUMA) da UFPA, o geólogo Norbert Fenzl afirma que a humanidade ainda não tem a capacidade de regular a temperatura do planeta, que é naturalmente variável independente das ações humanas. "O clima do nosso planeta mudou drasticamente em toda essa história da evolução. Nunca foi estável. Sempre foi o resultado de influências que são completamente fora da nossa capacidade de intervenção. Mas o que podemos dizer é que a forma como nós estamos destruindo o planeta pode, de fato, ter efeitos colaterais no clima", aponta.

image Geólogo Norbert Fenzl (Márcio Nagano / O Liberal)

Fenzl ressalta ainda que o debate não deveria se debruçar apenas no aquecimento global, mas principalmente nos aspectos socioeconômicos que envolvem a exploração agressiva da natureza por parte da humanidade. "A importância da Amazônia é muito maior para a sociedade amazônica e para os brasileiros, em geral, do que para a regulação do clima", pondera o pesquisador da UFPA. Ele destaca ainda que a destruição da floresta tem mais impacto para a sociedade regional amazônica, causando miséria e conflitos socioambientais, do que, efetivamente, para o clima.

Para Norbert Fenzl, o principal questionamento envolvendo a manutenção da floresta em pé e a importância de sua biodiversidade deveria ser sobre o modelo econômico vigente, que é o principal motor da ocupação destrutiva da Amazônia. "Podemos e devemos sim discutir se o desmatamento na Amazônia traz consequências climáticas. Só acho que não devemos tirar o foco do fato de que a destruição da floresta amazônica é fundamentalmente uma questão de destruição da nossa base econômica, o que causa sofrimentos não só para a sociedade amazônica. E é esse modelo econômico que é a principal causa dessa destruição".

"Não dá pra discutir as questões climáticas do mundo sem levar em consideração a importância da Amazônia, e muito menos dos povos tradicionais que vivem nela" - Uraan Anderson, vice-cacique geral do povo Paiter Suruí, de Rondônia.

Ele ainda pontua: "Se queremos acabar com a destruição do planeta, o que nos causa tantos danos, temos que mudar o modelo econômico global, e não achar que, com a simples redução do CO2, vamos poder regulamentar o clima do planeta e salvar assim a humanidade”.

Culturas tradicionais da Amazônia: pegadas sobre o clima

Principais guardiões da floresta, indígenas e quilombolas têm uma estreita relação com a Amazônia. Além de casa, a região é fonte direta de subsistência, e abrigo de culturas e de diversos saberes populares. Esse é o foco da atenção das várias populações que lutam contra o desmatamento. A destruição de áreas verdes é um fator que coloca em risco não só o ambiente e o equilíbrio do clima, mas também a própria sobrevivência desses povos.

image (Valdemir Cunha / Greenpeace)

O biólogo e cientista norte-americano Philip Martin Fearnside, que há anos atua no Brasil, como pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), argumenta: a população indígena é aliada no enfrentamento às mudanças climáticas porque evita as emissões oriundas do desmatamento e da degradação florestal. "Terras indígenas na Amazônia brasileira têm menos desmatamento que terras não indígenas, incluindo várias categorias de áreas protegidas para a biodiversidade", afirma Fearnside.

No recente artigo "COP-26: O Papel dos Povos Indígenas da Amazônia no Combate ao Aquecimento Global", o pesquisador ressaltou que a conferência ambiental em território escocês será palco de uma boa oportunidade para discussão desse viés em nível global. “Em sua participação na COP-26, os povos indígenas terão grande autoridade moral para insistir que os países do mundo tomem ações suficientes para manter o aumento da temperatura global dentro do limite de 1,5 ºC, que é o objetivo do Acordo de Paris, e que é necessário para evitar o sério risco não só de cruzar pontos de inflexão para o clima global, mas também para grandes secas e incêndios florestais na Amazônia”, avalia.

Vice-cacique geral do povo Paiter Suruí, de Rondônia, Uraan Anderson, é categórico: "Não dá pra discutir as questões climáticas do mundo sem levar em consideração a importância da Amazônia, e muito menos dos povos tradicionais que vivem nela". Para além das discussões, o líder indígena avalia que conhecimentos científicos e tradicionais também devem se alinhar para uma discussão mais ampla do problema. "O conhecimento científico construído a partir de estudos sistemáticos é tão importante quanto esses conhecimentos tradicionais, que foram construídos séculos a séculos pelos povos que vivem diretamente na Amazônia".

image (Valdemir Cunha / Greenpeace)

Cacique da aldeia Itahy, localizada no sudeste do Pará, Welton Suruí reforça que a vida dos povos indígenas está totalmente condicionada à atenção ao ambiente. "Para nós, povos indígenas, a questão ambiental é o princípio da nossa criação, porque nós somos um povo que vive na floresta", aponta ele, que lidera uma aldeia localizada entre as cidades de São Domingos do Araguaia e São Geraldo do Araguaia.

Esse cuidado também é compartilhado pelas populações de territórios quilombolas. Liderança da comunidade Abacatal, em Ananindeua, na Região Metropolitana de Belém, Vanuza Cardoso lembra que "tudo está interligado" no ambiente. “Assim como para os parentes originários [indígenas], a preservação é carro-chefe para nossas culturas, mesmo diante da agricultura de subsistência”, pondera.

Como a Amazônia regula o clima?

A floresta oferta grandes quantidades de água e retém de carbono da atmosfera. Entenda o peso desses dois importantes ciclos biogeoquímicos.

O ciclo da água
- Diariamente, cada metro quadrado de floresta oferta quatro litros de água na atmosfera;
- Apenas na área de floresta do Brasil, o volume diário encheria dez baías como a Guanabara;
- Essa água chega a diferentes regiões do planeta, retornando à superfície pelas chuvas;
- Mudanças na cobertura vegetal alteram a oferta de água;
- Sem água, secas ou enchentes podem se intensificar dentro e fora da Amazônia.

O ciclo do carbono
- As florestas são "sumidouros": retiram este elemento da atmosfera;
- O carbono assim vira biomassa, pela fotossíntese;
- O CO2 é um dos principais gases responsáveis pelo efeito estufa;
- Destruir florestas aumenta a sua concentração na atmosfera;

Impacto no efeito estufa
- Com mais CO2 na atmosfera, mais quente a Terra fica;
- Queimadas potencializam esse problema, liberando mais CO2 

E se a Amazônia sumisse?
- O quadro afetaria todo o planeta, apontam pesquisadores; 
- Variação de temperatura;
- Eventos climáticos extremos seriam potencializados;
- Muito mais tornados e furacões ainda mais intensos podem ser registrados;
- Secas e enchentes mais extremas;
- Redução generalizada da produção agrícola;
- Aumento da fome;
- Proliferação de doenças e pragas;

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