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De Fordlândia no Ciclo da Borracha a futuro Museu de Ciências, Belterra constrói novo futuro

Cidade do oeste paraense foi centro de extração de látex no século passado e ainda mantém tradições americanas na rotina da população

Elisa Vaz / O Liberal

Casas iguais, feitas de madeira nas cores branco e verde, ocupam várias vilas no município de Belterra, no oeste do Pará. As moradias levam o nome das funções desempenhadas pelos trabalhadores que ali viveram, quase um século atrás. As ruas planas da cidade-dormitório fabril, incrustada no coração da floresta amazônica, num período ainda de bonança do Ciclo da Borracha no Brasil, continuam cheias de referências aos anos 1930 - quando norte-americanos foram à então "Bela Terra" para criar um grande projeto de extração de látex, atividade que na época crescia e movimentava a economia na Amazônia. São vilas de operários, onde moravam os que trabalhavam por produção; as moradas dos mensalistas, destinadas a quem ganhava salário; e as casas dos americanos. Todas erguidas com características marcantes, que remetem a esse período.

Ouça o comentário desta reportagem em inglês:

Há quase 100 anos, no final dos anos 1920, Henry Ford, fundador das indústrias Ford de veículos, nos Estados Unidos, decidiu enviar funcionários à região amazônica para uma missão considerada estratégica: construir uma cidade do zero, onde pudesse ser extraído o látex para a produção de borracha. A meta era abastecer suas fábricas de pneus, no continente norte-americano. Foi assim que surgiu a Fordlândia, em 1928, como o primeiro lugar escolhido para esse sonho, às margens do Rio Tapajós. O que Ford não sabia é que o local não era adequado para o cultivo de seringueiras. E depois de tudo pronto, o projeto inicial foi abandonado pela constatação da dificuldade de produção - e Fordlândia se tornou uma cidade fantasma.

 

Só a partir daí é que Belterra foi vislumbrada. A localidade se tornou a nova sede eleita para uma segunda tentativa da missão. A nova cidade plana, de solo fértil, também foi toda projetada nos moldes americanos - dos costumes e tradições para seu funcionamento até o conjunto arquitetônico. O pedagogo e professor Antônio Castro, especializado em história, detalha: após o início frustrado do projeto em Fordlândia, foi o próprio filho de Henry, o também  empreendedor Edsel Ford, quem insistiu para que o pai prosseguisse com o sonho.

“Eles fizeram sondagens em toda a região. O local que foi concedido para eles, de um milhão de hectares, fazia parte territorial de Aveiro e Itaituba. Hoje é totalmente de Aveiro. Em Belterra, inicialmente, conseguiram 281.500 hectares e fizeram permuta com parte da área deles”, relata o historiador.

image (Tarso Sarraf / O Liberal)

Castro lembra que a cidade foi totalmente planejada: todas as estradas ímpares estão no eixo Leste-Oeste, e as pares, no Norte-Sul. Diferentemente de Fordlândia, os moldes de Belterra para o projeto eram considerados “perfeitos”. E a equipe realmente se empenhou para que a extração de látex desse certo na nova cidade. Até o final de 1944, um ano antes da desistência do projeto, os americanos já haviam plantado cerca de 3,2 milhões de hectares de seringueiras. Dessa quantidade, dois milhões tiveram melhoramentos genéticos.

"A emancipação veio em 1995. Foi muito trabalhosa, mas conseguimos. Eu e Belterra temos quase a mesma idade. Vi muita coisa sendo construída. A cidade cresceu muito de lá para cá" - Chardival Pantoja, morador de Belterra.

“Ford enviou um norte-americano que estava no sudeste asiático à Amazônia. Mas eles não tinham conhecimento sobre essas técnicas. Não sabiam do fungo que atacou a plantação em Fordlândia. Muitos europeus, porém, já conheciam. E foram os que realmente se uniram para fazer o grande plantio do sudeste asiático”, destaca Castro. “As sementes saíram da Amazônia para a Inglaterra, onde começaram a produzir as primeiras mudas de plantas e as levaram para a Ásia. Eles buscaram fazer o melhoramento genético por essa preocupação com o fungo. Fizeram esse trabalho lá. A planta se fixou na terra muito bem, pelo solo e clima”.

Quando o trabalho da Ford iniciou em Belterra, o botânico encarregado pelo projeto sugeriu tentar trazer mudas da planta modificada em laboratório. “E então ele fez essa viagem de um mês, e retornou com 1.046 mudas, que foram usadas para o melhoramento aqui”, conta o historiador.

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Antônio Castro ressalta: mesmo com o sucesso na empreitada, um ano depois o projeto chegou ao fim. E entre as causas principais para isso está primeiramente a morte do filho de Henry Ford, em 1943 – o grande incentivador do projeto no Brasil tinha sérios problemas de saúde. Também colaborou para a derrocada a evolução da produção da borracha sintética, que já havia sido descoberta, embora ainda não fosse produzida em escala industrial.

O encerramento da Segunda Guerra Mundial foi o terceiro fator decisivo. “No auge da Guerra, os japoneses tomaram o controle das plantações do sudeste asiático. Para atrapalhar as tropas aliadas, eles retraíram a exportação. Com isso, a Amazônia não era suficiente para suprir a demanda internacional. Quando a Guerra foi dando sinais de que ia acabar, a Amazônia sofreu um colapso econômico. Parou de exportar, mas não de extrair”, diz Castro. Assim, o contrato de concessão do projeto, que tinha duração de 50 anos, só durou 17.

Morador testemunhou história

São três as fases mais importantes na história de Belterra: a que foi liderada pelos norte-americanos; o período em que o Ministério da Agricultura comandou as terras, por meio das Delegacias Federais no Pará, por 50 anos, de 1946 a 1995, quando o então governador criou o município de Belterra; e o período posterior, até hoje.

Nascido e criado em Belterra, Chardival Pantoja, de 83 anos, é um dos que acompanharam quase todos esses 87 anos de história, desde a chegada dos americanos à região, em 1934. Ele é tido como um historiador local - além de poeta, que já compôs até o hino da cidade. Pantoja já foi administrador de Belterra e de Fordlândia, ainda quando estavam no processo de luta pela emancipação. E também já foi secretário de Meio Ambiente e Turismo.

image (Tarso Sarraf / O Liberal)

Chardival não conheceu o pai, falecido quando tinha apenas dois anos. Criando ele e os outros três filhos, sua mãe não tinha muitas condições financeiras. Foi assim que duas das crianças da família – ele e a irmã mais nova – cresceram na creche oferecida pelas indústrias Ford. “Convivi muito mais na creche nos primeiros anos de vida do que em casa. Minha mãe era pobre. O que sobrou foi lá. Eles tinham o espaço para suprir as necessidades das mulheres viúvas que não tinham como sustentar a família”, conta.

Após concluir os estudos básicos, Chardival reivindicou a “chapa” de sua mãe - como era chamada a identificação de cada funcionário na indústria Ford. “Cada um tinha uma chapa branca e quatro amarelas. A branca era para identificar o funcionário, e a amarela o material que ele precisava”. 

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O próprio Chardival entrou no serviço em 1957, na Usina de Beneficiamento do Látex. Parou um ano, para servir no Exército. Voltou, estudou e começou a trabalhar como professor de educação física no ginásio. Depois, junto com a esposa e os quatro filhos, se mudou para Rondônia, onde passou três anos. Só voltou a Belterra com mais de 50 anos de idade.  “Depois que o projeto acabou, partimos para a luta pela emancipação”.

No movimento, incentivado por amigos, marcou a primeira reunião com lideranças e professores – mais de 30 pessoas compareceram. A dúvida era: entregar a terra para Santarém ou lutar para ser um município emancipado. Todos votaram na segunda opção. “Me aposentei em 1990, mas sempre fui ligado a esses assuntos. A emancipação veio em 1995. Foi muito trabalhosa, mas conseguimos. Eu e Belterra temos quase a mesma idade. Vi muita coisa sendo construída. A cidade cresceu muito de lá para cá”.

Arquitetura do sonho americano segue de pé

Um dos grandes atrativos de Belterra é o conjunto arquitetônico da era Ford. Ele permanece intacto, mesmo após o fim do projeto e da emancipação. E muitos costumes trazidos pelos americanos também continuam os mesmos. Algumas casas passaram por reformas, mas a população tenta ao máximo preservar as características originais, mesmo que os materiais da época sejam difíceis de encontrar hoje. A “Casa número 1” é um ponto turístico marcante da cidade: a residência, construída especialmente para a família Ford, mantém as mesmas cores de quando foi erguida. Curiosamente, os donos nunca vieram à Amazônia. Hoje, o local, que já hospedou Getúlio Vargas, por uma noite, está sendo restaurado.

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Outro destaque é a primeira igreja da cidade, na praça central. Ela ainda mantém a fachada intacta e bancos originais. Atualmente, porém, só funciona como depósito. Os cultos são feitos em um edifício ao lado. 

Logo na entrada da cidade, há ainda a famosa caixa d’água, que é um dos pontos de maior visitação local. Instalada a pedido da Ford, ela abastece Belterra até hoje. O que chama atenção é a sirene. O som que servia para marcar o expediente dos trabalhadores nos seringais soa até hoje: indica os horários às 6h, hora de acordar; às 7h, para começar o trabalho; às 11h, em uma pausa para o almoço; às 13h, para o fim do intervalo; e depois às 16h, encerrando as atividades.

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Os turistas também costumam visitar na cidade o Bosque das Seringueiras, que guarda árvores desde o período extrativista e tem uma paisagem encantadora. Lá dentro, também há o Centro de Memória de Belterra, que possui um arquivo de fotos, vídeos e documentos originais. 

Outro destino é a Praia do Pindobal - que, diferentemente do que acreditam alguns, não faz parte de Alter do Chão, e sim de Belterra. A Floresta Nacional do Tapajós (Flona), outra atração a muitos visitantes, também está dentro dos limites do município.

Investimentos devem aumentar em Belterra

Uma das filhas de Chardival, a administradora Zayra Pantoja, de 47 anos, mantém um restaurante em Belterra junto com o marido. Albino Torres, conhecido como Júnior Torres, de 45 anos, também é administrador. A empresa começou com uma venda de churrasquinho, pela mãe de Júnior, há 36 anos. Zayra conta que os clientes são fiéis. Mas, acha que a cidade não recebe novos turistas porque não há incentivo. “As praias de Belterra são Cajutuba, Porto Novo, Santa Cruz, Pindobal e várias outras. Tem muita coisa a ser explorada. As pessoas daqui gostam de história, amam a cidade, gostam de mostrar o que têm, mas infelizmente isso não é bem divulgado”.

Para Júnior, falta estrutura para hospedagens. Segundo ele, é provável que haja na cidade apenas de 15 a 20 quartos, em hotéis e pousadas, sem contar com as casas de veraneio. “Também não há muitos eventos. As pessoas não têm dinheiro, e não investem porque não vem hóspede. Não dá para sustentar uma estrutura grande”. Hoje, o casal vende mais para Santarém: das 250 a 300 refeições de todos os dias, já encomendadas, contendo café da manhã, almoço e jantar, 70% vão para a cidade.

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Belterra tem belezas naturais para dar e vender, avalia o casal. Investimentos nas estruturas de praia, com orlas e banheiros públicos, seriam bem-vindos. O asfaltamento da estrada de Alter do Chão à Praia do Pindobal, a mais famosa da região, também. Se isso ocorrer, avalia Júnior, o número de visitantes pode triplicar.

O secretário municipal de Turismo de Santarém, Alaércio Cardoso, concorda. Por isso, o órgão tem estudado, junto com o Ministério do Turismo e a Secretaria de Estado de Turismo (Setur), como esses investimentos devem ser feitos. As estradas estão entre as previsões para 2022, que vão dar acesso às praias de Santarém e Belterra.

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“Queremos integrar Santarém aos municípios vizinhos de Mojuí dos Campos e Belterra, que está ganhando um museu importante para a região. O forte de lá é o turismo ecológico e o centro histórico. Ela é nova, mas tem uma história muito bonita. Esse circuito iria potencializar muito a região. Para Santarém, também é importante que Belterra se fortaleça”. Com a Floresta Nacional da região, o secretário lista ainda um projeto para fortalecer o turismo ecológico de base comunitária, envolvendo dezenas de comunidades e milhares de pessoas.

Já o projeto para o Museu de Ciências de Belterra, que está sendo construído e funcionará no antigo Hospital Henry Ford - destruído por um incêndio em meados da década de 2000, dentro do Bosque das Seringueiras -, também deverá contribuir para atrair pessoas de fora. Como muitos não conhecem a história de Belterra, o seu foco inicial será a pesquisa arqueológica de antigas civilizações indígenas. Algumas pessoas, por conta própria, têm feito trabalhos de escavação e já encontraram muitas peças. A administração desse acervo será feita pela Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).

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