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Cultura com DNA da Amazônia

Da Marujada ao tecnobrega, de Parintins ao Sairé, manifestações culturais da região carregam, na identidade, as mais diversas tradições da floresta e dos povos originários, além de influências externas, como o ritmo caribenho

Lucas Costa e Enize Vidigal

Se a Amazônia é um caldeirão cultural, é certamente um que nunca parou de fervilhar. Seja em Parintins, no Amazonas, em Belém ou Santarém, no Pará, por todos os lados, a formação cultural dos povos conversa diretamente com expressões que resultam de conexões e referências diversas, que desaguam em manifestações exuberantes para os sentidos, principalmente os da visão e audição.

Ouça o comentário desta reportagem em inglês:

As apresentações artísticas mais conhecidas da Amazônia têm algo em comum: a conexão entre o som e o visual, mesmo que carreguem influências diferentes em sua formação, que podem depender do espaço físico, dos povos originários e de interferências externas.


A Marujada de Bragança, no Pará, por exemplo, tem origem ancorada em heranças do período escravocrata. A festa em celebração ao padroeiro da cidade, São Benedito - o santo preto - , tem seu início registrado no final do século 18, ligada a relações de permissividade na relação entre senhores brancos e escravos.

A festa religiosa carrega referências de todas essas relações, com heranças de territórios diferentes, que resultam em uma expressão que mescla religiosidade a uma tradição de dança e som. O retumbão, por exemplo, marca da manifestação musical da Marujada, alia instrumentos com origens diversas, como a rabeca, a zabumba e o triângulo; tudo isso é aliado ao visual único dos trajes tradicionais da Marujada, que têm cores diferentes dependendo do dia de festividade. As famílias passam semanas dedicadas à produção dessas vestimentas, já que elementos como o chapéu das Marujas têm flores delicadas feitas uma a uma com penas de pato.

image (Tarso Sarraf / O Liberal)

Assim como a Marujada, outra manifestação alia o visual exuberante à música: o Festival de Parintins, no Amazonas, onde se enfrentam anualmente os bois Garantido e Caprichoso. O evento, desfiles cheios de elementos visuais e coreografias, carrega o nome da ilha onde ocorre oficialmente desde 1965, todo mês de junho.

No estado amazonense, origens e influências também se misturam. Caprichoso e Garantido são bois-bumbá, uma variação do bumba-meu-boi do nordeste brasileiro. E mesmo que a música que dá o ritmo da festa seja a toada, desfiles e letras estão sempre repletos de referências a narrativas tradicionalmente amazônicas, levando às apresentações figuras indígenas, da floresta e também ligadas a religiosidade de povos originários.

image (Sandro Pereira / AE)

O boi-bumbá também atravessa fronteiras e tem suas representações no Pará, como o Arraial do Pavulagem, que colore as ruas do centro de Belém durante o mês de junho e também em períodos pontuais do ano.

Outra festa amazônica que mistura religiosidade às expressões de exaltação do folclore e tradições é o Sairé, em Alter do Chão, Santarém, no oeste do Pará. A festa, que tem origens em missões jesuítas e cristãs de Portugal - que tinham o objetivo de evangelizar povos originários como os indígenas - acabou se tornando uma celebração que conversa com o cristianismo, mas também exalta elementos da religiosidade de povos originários, como os encantados da floresta, por exemplo.

image (Rodolfo Oliveira / Agência Pará)

Algo em comum entre grande parte destas manifestações, para além da conexão entre música e expressões visuais, são suas transformações ao longo do tempo, se mantendo vivas na contemporaneidade. Se a Marujada nasceu num período escravocrata, hoje pode expressar um vislumbre de representatividade negra dentro do cristianismo eurocêntrico, sem negar origens do povo negro no Brasil. Ou se o Festival de Parintins pode ser conectado com o nordeste brasileiro, é difícil não pensá-lo como uma representação contemporânea de povos amazônicos, assim como seus anseios. Da mesma forma, se o Sairé tem origem na colonização, hoje também exalta elementos da cultura de povos originários.

Folclores diversos, identidade única

As manifestações culturais amazônicas, que podem ser comparadas aos encontros de rios, que vêm de diversos lugares e desaguam formando identidades únicas, nunca pararam de correr. O músico Félix Robatto, que chegou a pesquisar a história da música do Pará como as origens da guitarrada, destaca que as manifestações musicais da Amazônia, mesmo quando não são necessariamente expressões tradicionais, carregam influências de seu território.

image Félix Robatto [ao centro] é músico (Bruno Carachesti / Divulgação)

“O Pará, na verdade, é repleto de manifestações folclóricas diferentes, de carimbos diferentes. Tem o carimbó da região do Salgado, o carimbó de Icoaraci, do Marajó, tem o lundu, tem a Marujada, o retumbão, tem o boi. E Belém é um caldeirão, Belém parece que é onde tudo isso deságua”, analisa Félix.

O artista, que mora na capital paraense, acredita que o encontro de todas essas referências faz de Belém um território diferente para a criação. “Acho que tudo isso influencia muito no processo criativo, na interpretação do fazer cultural”, diz.

Assista Félix Robatto:

“Sempre falo que as bandas daqui, mesmo não fazendo um trabalho regional, conseguem fazer um diferencial só por serem daqui. Não é um pensamento bairrista, que o paraense é maioral. É que o nosso pensamento em relação a criação e cultura é diferenciado já. Tanto que vemos pessoas às vezes fazendo o mesmo gênero musical, um diferenciado do outro, mas dificilmente se confunde o artista”, explica Félix. 

Layse Rodrigues, vocalista do grupo Layse e Os Sinceros, enxerga que essa produção, essa influência de território destacada por Félix, vem também de um aprendizado e contato com expressões culturais tradicionais. “Acaba que tudo se mistura, porque a gente aprende a dançar carimbó, a gente aprende a dançar lundu, os outros ritmos daqui”, analisa.

A artista, por exemplo, carrega em seu fazer artístico os Bailes da Saudade, outra manifestação onde o encontro de referências resulta em um ambiente que transpira identidade amazônica.

Assista Layse e Os Sinceros:

“Com os ritmos populares que vieram do Pará, como o carimbó e o lundu, dois ritmos de se tocar pau e corda, misturados com as influências de rádio caribenha que a gente tinha, foi se criando essa mistura que é a nossa música de chão, essa música de tambor que é firme; e juntamente com as influências caribenhas que vieram com a guitarra, com o merengue, da música romântica, resultam nos bailes da saudade”, conta Layse.

Futuro: uma Amazônia multicultural

Se existe música amazônica da contemporaneidade é porque, certamente, existe a vanguarda. Já que o território é basicamente uma influência inerente, é possível dizer que mesmo quando há o intuito de produzir música focada em um público mundial, o artista da Amazônia carrega na bagagem a exposição a um cenário carregado de expressões culturais, transpassadas por diversas influências que levaram a suas formações.

Esse desafio de representar a vanguarda da música paraense foi assumido por alguns artistas, entre eles, Gaby Amarantos em seu recente disco “Purakê”, descrito por ela como uma proposta de mostrar “uma Amazônia que é multicultural no futuro”.

Essa conexão entre o tradicional e novas referências também reflete no trabalho de Layse, em um movimento descrito por ela como de extrema importância, seja na experimentação ou manutenção de saberes tradicionais.

"Falando da Amazônia do futuro, eu acho que é uma forma moderna de encarar a música com a influência do interior (...) tem aparelhagem, tem a lambada, tem o carimbó, que tem a guitarrada[...]" - Félix Robatto, músico.

“Um dos principais pontos que me ligam a isso dentro do meu trabalho de hoje em dia é o fato de eu estar conectada com esses mestres da cultura, participando de alguns eventos de cultura popular com eles. Eu sendo da nova geração e eles da geração deles. Não é uma forma de eu ensinar como faz a nova música paraense para eles, é a gente criando um jeito de misturar a tradição com as novas influências que vem chegando pra nós”, conta Layse.

Félix, por outro lado, destaca nomes que também podem representar a linha de frente de uma música contemporânea e também de vanguarda, ao lado de Gaby Amarantos.

"Falando da Amazônia do futuro, eu acho que é uma forma moderna de encarar a música com a influência do interior, com a influência da dança, que é uma coisa muito forte na nossa cultura aqui, do baile. Tem aparelhagem, tem a lambada, tem o carimbó, que tem a guitarrada[...]. Tem muitos artistas que fazem uma coisa diferente aqui, entre eles, Strobo, Bando Mastodontes, Móbile Lunar, Dois na Janela. São bandas que não necessariamente fazem música regional, mas têm a pegada deles, tem a mistura deles, e é um assunto muito amplo, um assunto de bar para conversar horas e ter várias perguntas e várias respostas”, pondera Félix.

Carimbó, bregoso, tecno e “ópera cabocla”

A cultura popular amazônica também sobrevive da resistência. O desafio número um dos mestres da cultura é perpetuar as tradições identitárias entre as gerações, o que se dá, muitas vezes, apenas oralmente e em um determinado território. O desafio seguinte é ter essa cultura difundida e valorizada para além das fronteiras do Norte do Brasil, superando o preconceito sobre a cultura de uma das regiões de maior abandono socioeconômico do país.

Pinduca, o Rei do Carimbó, de 84 anos, com 70 anos de carreira, enfrentou vaias quando começou a tocar esse ritmo regional nos bailes de Belém, capital do Pará, no início dos Anos 70. “Carimbó era música do interior, ninguém aceitava na cidade. Era proibido tocar (carimbó) nos bailes e nas festas”, recorda.

image (Cristino Martins / O Liberal)

O ritmo que Pinduca trazia para o centro urbano arrebatou o artista em uma estrada vicinal do município de Irituia, nordeste do Pará: “Eu ouvi um batuque pra dentro do mato. Eu e os músicos da minha banda fomos ver o que era aquilo. Havia um barracão com as pessoas dançando carimbó, chega todo mundo tava suado. Eu entrei, dei uma dançada no meio do pessoal. Isso foi o começo de tudo”, recorda.

Em 1973, ao lançar o primeiro disco, por uma gravadora de São Paulo, Pinduca surpreendeu ao anunciar que seria de carimbó. O disco ajudou a popularizar o gênero, que passou a tocar nos bailes e recebeu o estímulo da dança típica nas apresentações com dançarinos. “Os jovens começaram a dançar o carimbó (nos shows)”. Outros mestres do carimbó vieram se apresentar em Belém.

Assista Pinduca:

Pinduca lançou 40 discos autorais de carimbó. Em 2014, o ritmo foi reconhecido como patrimônio cultural e imaterial do Brasil, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em 2017, “No Embalo do Pinduca” foi indicado ao Grammy Latino como melhor álbum de raízes brasileiras. Pinduca faz shows por todo o Brasil, já tendo se apresentado outros países latinos e também na França, Alemanha e na África. “O carimbó se tornou valorizado no Brasil e no mundo”.

A cantora Keila Gentil, de 30 anos, teve como referência a cultura da periferia de Belém. Aos 18 anos, despontou na composição e na dança como B-Girl (hip hop), assim como no grafitti e no skate no bairro do Guamá. Por oito anos, foi vocalista da Gang do Eletro, banda que exportou o som da periferia de Belém, como o tecnobrega, “a conexão do bregoso com a pegada eletrônica”, define. No palco, o ritmo ganhou uma forte representante do “treme”, uma evolução dos movimentos de dança das festas de aparelhagem. “É uma pena que o movimento não tenha se sustentado. O passo de dança periférico passa muita represália”.

image (Cristino Martins / O Liberal)

Keila iniciou a carreira solo em 2018, mantendo a energia e a performance de palco que a projetaram nacionalmente. Ela já se apresentou no Lollapalooza, em 2018, e no Rock in Rio, em 2019, além de festivais como South by Southwes (SXSW), dos Estados Unidos; Trans Musicales, da França; Global, na Dinamarca; e Lusotronics, na Alemanha. “Continuo produzindo músicas em conexão com os artistas e as periferias de outros lugares”.

Assista Keila:

A resistência deu à radialista Iracema Oliveira, de 84 anos, o título de mestre da cultura popular, pelo Ministério da Cultura e pela Fundação Cultural do Pará. Ela é guardiã do Pássaro Junino Tucano, responsável pela salvaguarda desse folclore típico da periferia de Belém, que é um teatro popular musicado, típico de São João, comumente exibido nas ruas, com figurino elaborado, canções exclusivas e enredo baseado na perseguição de um pássaro por um caçador. Acredita-se que a “ópera cabocla” surgiu na Belle Epoque, século XIX, inspirada nas grandes óperas do Theatro da Paz que eram inacessíveis aos pobres.

image (Claudio Pinheiro / O Liberal)

Além do pássaro, Iracema mantém um grupo de Pastorinha (auto de Natal) e um grupo para-folclórico. “Eu vivo em função da arte desde 1945, quando eu tinha 7 anos”, conta ela, que aprendeu com o pai, Francisco Oliveira. Atualmente, existem 15 grupos de pássaros juninos em Belém, sendo o Tucano um dos mais antigos, fundado em 1927. Dois grupos se estagnaram com o falecimento das guardiãs, tornando mais rara essa manifestação.

“A nossa vontade era de apresentar o pássaro junino o ano inteiro, mas não tem teatro”, lamenta. O Tucano possui 40 brincantes, entre crianças, jovens e adultos, o que dificulta a locomoção para as apresentações em outras cidades. “Não é só ter um grupo, é ter um trabalho social com as pessoas, tem que ter amor, se não tiver amor por essa cultura você não faz”. O Tucano se prepara para ter as suas músicas gravadas pela primeira vez.

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