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#Gratidão: o cuidado com a vida mostra a sua cara

Conheça a história de luta de heróis anônimos no enfrentamento à pandemia

Gabriel Pinheiro
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O jornal O Liberal inicia hoje uma trilogia de cadernos especiais chamado “Gratidão”, uma iniciativa da Prefeitura Municipal de Belém, que visa tão-somente agradecer à dedicação e ao empenho dos seus profissionais de Saúde. São histórias de trabalhadores que foram ao enfrentamento da pandemia da covid-19 e, mesmo diante do medo, do negacionismo, da desinformação, da ameaça iminente de escassez de equipamentos de proteção individual e até de remédios para intubar pacientes, ajudaram a salvar vidas. Mesmo que para isso, alguns tenham doado a sua própria. 

Nossas palavras, nestas 3 edições, que começam hoje, querem homenagear todos os profissionais de saúde que lutaram, muitas vezes, à exaustão de suas forças para salvar vidas. Não teria sido possível chegar onde chegamos, sem eles. E é aqui que reside o conceito-chave deste caderno: a gratidão. Confira!

Miguel e a marca Maria 

image Miguel Nascimento construiu uma amizade sólida com a colega de curso e de profissão que não sobreviveu à covid-19 (Prefeitura Municipal de Belém)

O ano de 2020 foi um marco na vida de Maria das Graças Santos Gomes, de 48 anos. Cinco anos depois de ter entrado na faculdade de Enfermagem, seu grande sonho, ela, finalmente, havia concluído o curso. Como não poderia deixar de ser, a solenidade foi um dia de festa para a família dela e para a família de outras tantas pessoas que conquistavam o diploma de enfermeiros pela Universidade da Amazônia, em Belém. Eles não sabiam, mas seriam um reforço e tanto para o sistema de saúde local que dali a pouco mais de um mês precisaria do esforço e do trabalho de cada um para atender aos pacientes de covid.

E se é verdade que as pessoas são para o que nascem, Maria das Graças é dessas pessoas para as quais a gente olha e diz: dom. O “dom” dela era cuidar. Cuidar, como ninguém, de seus pacientes. Sim, porque bem antes de entrar na faculdade e realizar o sonho de ser enfermeira, ela já trabalhava como técnica de enfermagem no Pronto-Socorro do Guamá e no Hospital Universitário João de Barros Barreto. Em 2018, muito antes da pandemia, compartilhou em uma rede social: “O paciente não é só um paciente, ele é o amor de alguém. Vamos viver essa frase”.

A inspiração que compartilhava nas redes, transbordava. Na vida real, foi na sala de aula que seu jeito alegre ganhou a amizade dos colegas. Miguel Silva do Nascimento Junior, 20 anos mais novo, era um deles. No terceiro semestre do curso, quando as turmas deles se juntaram, inspirar virou o mandamento “número um” da amizade que construíram. Quando ela, mãe de dois filhos, casada, dois empregos, estudante, sugeria querer desistir, eles, os amigos, entravam em campo. Miguel, especialmente. “Não, Dona Graça! Pare com isso. A senhora é muito forte!”, dizia. E ânimo novo tomava o espírito de ambos para seguir. Ela inspirava pelo exemplo, pela mulher, pela profissional, pela estudante que era.

Quando as provas davam um tempinho, era tempo de sonhar um outro sonho. A festa de formatura! E mais uma vez, os amigos tinham algo em comum. Eles foram os que mais compraram convites extras para a grande noite. Era para ninguém ficar de fora desse dia que prometia muita felicidade, som, cor, suor e, porque não, uma certa magia. Mas a pandemia não deixou. A festa foi adiada.

Dona Graça, que seguiu trabalhando como técnica de enfermagem nos dois hospitais, foi infectada pelo novo coronavírus, internada, ela não resistiu às complicações. Morreu de covid, no dia 8 de maio de 2020, aos 48 anos, após realizar o grande sonho de se formar enfermeira.

INSPIRAÇÃO SERÁ ETERNA

image Maria das Graças realizou o sonho do diploma e faleceu na luta para salvar vida (Arquivo pessoal)

Nos idos anos de 1970, Milton Nascimento, escreveu para a mãe, Maria Nascimento, que quem trazia no corpo e na pele a “marca” misturava dor e alegria e tinha uma estranha mania: a de ter fé na vida.

E é dessa mistura de sentimentos que também incluem a dor (pela perda) e a alegria (pela vida juntas) que Maynara Gomes, de 27 anos, filha de Maria das Graças, tira forças para falar da mãe. “Sobre os valores? Bem, minha mãe sempre nos ensinou o correto, a não desistir de seus sonhos, em acreditar em nosso potencial, em ter caráter, respeito, a ser pessoas íntegras, com responsabilidade e ser forte perante as adversidades da vida. Gratidão... é o agradecimento, reconhecimento por alguém. Sou grata pela minha família, sou grata a Deus e sou grata a Graça Gomes, por ter honrado o papel de mãe e ter construído uma família linda e muito feliz”.

Dos muitos “porquês” que se levantaram sobre a partida precoce da mãe, da esposa, da amiga e da profissional, há um consenso. Que para a vida de todos, foi preciso ter Graça.

Passados quase 50 anos dos versos de Bituca que ecoam há gerações e que se ressignificam na história de cada Maria, a poesia segue com efeito. Na história desta Maria que contamos, a “marca” dela será perene aos filhos, ao marido e aos amigos que inspirou. Como Miguel.

“Dona Graça me inspirou, sem dúvida. A alegria dela chamava atenção. Estava sempre sorrindo, apesar das dificuldades, e o jeito com que ela conquistava os amigos. Como profissional, o comprometimento com a Enfermagem era lindo de ver”, diz.

Hoje, Miguel é coordenador do posto de vacinação do Mangueirinho e da vacinação domiciliar. Diariamente, a depender do grupo que está sendo atendido, conta Miguel, a quantidade de vacinados varia, em média, de mil até três mil pessoas. Ele que escolheu a Enfermagem ainda na infância, em Abaetetuba, na região do Baixo Tocantins, no Pará, inspirado por Dona Maria e “sua disposição inigualável a ajudar pacientes”, confidencia que o mais marcante da trajetória envolvendo a campanha de vacinação e a pandemia está sendo a experiência de adentrar nas diversas realidades sociais, especialmente na vacinação domiciliar. 

“Levamos a vacina a acamados de classes sociais muito altas até a pessoas praticamente excluídas da sociedade, vivendo na pobreza, nas mínimas condições de dignidade. Desde moradores de prédios de luxo até às casas extremamente pobres. Ao nos depararmos com essa realidade, procuramos fazer com que a vacinação seja igual para todos e alcance a todos de maneira igualitária”. “Tive a oportunidade de me vacinar como profissional da saúde e foi um momento indescritível, pois senti como se tirasse o peso do mundo das costas, com muito alívio também porque faço parte do grupo de risco por ser hipertenso. Sem dúvida, esse momento foi um marco na minha vida pessoal e profissional”.

O piloto das corridas pela vida

image Walber Pinheiro corre contra o tempo e o prêmio é salvar vidas (Arquivo pessoal)

Era em um sobrado de alvenaria e madeira no bairro do Telégrafo, em Belém, na década de 1990, que o pequeno Walber se juntava à família de 6 pessoas para assistir às disputas eletrizantes e às vitórias de Ayrton Senna, na Fórmula 1, pela televisão. Ligar a TV aos domingos e celebrar Senna era a rotina da família dele e de milhões de outras, país afora. Um ídolo brasileiro que, nas pistas, vencia todos os obstáculos e todos os adversários para conquistar o título de campeão mundial e levar um país inteiro à catarse. Orgulho que mal cabia no peito e que, certamente, ajudou a transformar Senna, um homem, em herói.

Mas, nas curvas da vida, há um obstáculo que faz prostrar até o mais invencível dos homens: a morte. A de Senna, por exemplo, comoveu e enlutou brasileiros de Norte a Sul do país. No Telégrafo, em Belém, não foi diferente. A casa do pequeno Walber, também se entristeceu com a notícia da partida precoce do piloto paulistano, de 34 anos.

Os anos se passaram e o menino baixinho de cabelos cacheados cultivou, talvez sem nem saber, um sonho. Como tantas crianças, a vontade dele de dirigir era grande. E quando lhe perguntavam o que ele queria ser quando crescesse, a resposta era caminhoneiro. Curioso, observava, sempre atento, quando algo acontecia em seu entorno. Certa vez, foi um atendimento médico prestado por uma ambulância num ponto da cidade que lhe chamou atenção. Mas o destino também tinha seus planos. E, para quem acredita, ele quase nunca pede permissão para se decidir. Mal sabia o pequeno Walber, baixinho e de cabelos cacheados, que, mais tarde, como Senna, ele também precisaria adquirir as habilidades de um piloto.

Agilidade, inteligência emocional, preparo físico, reflexo, muita atenção. A vida ensinou e o posto de condutor de ambulância, que Walber Lemos Pinheiro, de 35 anos ocupa há 9, também contribuiu. É essa função que ele desempenha que faz conectar todas as histórias. Diferentemente do ídolo da infância, tricampeão mundial, que tinha pistas livres pelo mundo para correr veloz, Walber tem, em Belém, as ruas e avenidas quase sempre engarrafadas. A corrida dele é contra o tempo. O prêmio: salvar vidas.

O trabalho de Walber e dos outros 537 trabalhadores que prestam serviços ao Samu, em Belém, aumentou muito desde que os casos de coronavírus pressionaram o sistema de saúde da capital paraense. Se em tempos de normalidade as ocorrências chegavam, no máximo, até 4, nos piores dias da pandemia, elas poderiam chegar a 12. Em um plantão de 24 horas, Walber já chegou a rodar 300 quilômetros. É como dar quase 70 voltas nas pistas do autódromo de Interlagos, em São Paulo, que recebe a Fórmula 1 no Brasil.

MEDO E SUPERAÇÃO

image Protetor, Walber se distanciou da esposa e do filho, mas ambos já estavam doentes e, felizmente, venceram a covid (Arquivo pessoal)

Como os pilotos, Walber também tem seu uniforme. Mas no lugar da balaclava e do capacete da escuderia, equipamentos de proteção individual para dar conta do que vem pela frente. O grid de largada é sempre o mesmo. Começa às 5 horas da manhã, já que o plantão se inicia às 7 da manhã de um dia e vai até às 7 da manhã do outro dia. Com ele, mais duas técnicas de enfermagem e o medo. Sim, porque bons heróis também temem seus adversários e o que vão experienciar em seus combates.

Se antes os adversários eram passíveis de serem enxergados, na guerra da pandemia, o vírus, adversário letal, é também invisível a olho nu. Mas se personifica no rosto, na história e no prontuário de cada um dos mais de 100 mil pacientes que tiveram o diagnóstico de coronavírus confirmado em Belém, desde o início da pandemia, segundo dados oficiais da Prefeitura.

E se na ida para trabalho o sentimento era de medo. Na volta, mais de um dia depois, tristeza e dúvida. “Como a doença era nova, não sabíamos quem se contaminaria e se iria conseguir resistir”, confidencia Walber.

Em 2020, Walber aos 34 anos, a mesma idade de Ayrton Senna no ano do fatídico acidente no Grande Prêmio de San Marino, em Ímola, na Itália, também descobriu que a matéria vida era tão fina. Durante o auge da pandemia, ele, com “muito medo” de levar a doença para dentro de casa, se distanciou da esposa, Mileny Pinheiro, de 31 anos. Ela se mudou para a casa do pai. Mas antes de ir, já havia sido contaminada.

Ela e ele ficaram doentes, longe um do outro, ao mesmo tempo. Ele, que ajudou tantas vezes, tantas pessoas, teve medo de não poder socorrer a própria esposa, seu grande amor. Agora, eles eram os pacientes e precisavam se cuidar. Felizmente, as coincidências entre Walber e Ayrton pararam por aí. Livre do coronavírus, o casal se reencontrou no apartamento deles, em Ananindeua, na Grande Belém.

No fim de tantas corridas, um prêmio que Walber jamais vai esquecer: foi vacinado em 18 de fevereiro de 2021. E mesmo em meio a tristeza pelas perdas de colegas, profissionais de saúde, o piloto das corridas pela vida, encontrou, nos pacientes que ajudou a salvar e na saúde dos familiares, um espaço para sentir gratidão.

A força de um amor de mãe

image Jéssica e a pequena Roberta, que superou doenças graves e deu força à mãe em sua missão como técnica em Enfermagem (Arquivo pessoal)

O fim do mês de julho de 2020 não foi nada ensolarado para Jéssica. Os 30 dias que separaram a entrada da filha dela, Roberta, de 3 anos, no hospital, até a volta para casa, foram de muito sofrimento. Os médicos desconfiavam que a menininha sorridente e de cabelos escuros podia estar com leucemia. Se tivesse sido confirmada, seria um caso raríssimo. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer, só 3% dos casos de câncer atingem a população de até 19 anos. Mas não parou por aí. Além da infecção no sangue, o quadro clínico da criança incluía pneumonia e derrame pleural.

Jéssica que, àquela altura, estava prestes a se formar no curso técnico de enfermagem, sabia que a situação não era nada boa. O estado de saúde da filha era grave. “Só Deus nas nossas vidas”, resume ao lembrar dos dias de terror que viveu quase um ano atrás. Sentimento muito diferente daquele dia em que a pequena Roberta anunciou que chegaria em 9 meses. Estavam todos reunidos em casa, em um fim de tarde, quando a cunhada de Jessica, desligou o telefonema com a clínica e anunciou a boa nova: sim, Jéssica estava grávida. 

A jovem de 19 anos estava no último ano do ensino médio e já era casada há 3. A gravidez acompanhou as aulas do convênio e a expectativa para as provas do vestibular. Roberta nasceu em dezembro, pertinho do Natal. Um mês depois, lá estava a pequenininha acompanhando a mãe nas provas finais, que ficaram para o mês de janeiro. A amizade que começou naquele fim de tarde de alegria, ficava mais forte a cada dia. 

Elas viraram parceiras inseparáveis. E o sonho de Jéssica de fazer faculdade e se tornar enfermeira ficou para depois. Apesar da grana curta, ela escolheu pagar um curso técnico de enfermagem. Mesmo assim, durante dois anos, a pequena Roberta teve dedicação quase que exclusiva da mãe. Uma troca que, segundo Jéssica, a incentiva a querer vencer. Teria sido esse tempo de dedicação um fator decisivo para a escolha que ela fez? Talvez. Não fosse a própria Enfermagem que a tivesse escolhido, como Jessica costuma dizer a amigos. Uma lógica que, apesar de parecer inversa, ganha força na reciprocidade. Se por um lado a Enfermagem precisa de Jessica, Jessica também precisa da Enfermagem “para sentir que faz algo pelas pessoas”, “para contribuir com o bem-estar e com a saúde delas”, diz.

MISSÃO DE VACINAR

Foi essa qualidade de ser humano e a dedicação e o talento da profissional que a levaram para um estágio na UBS da Pratinha e depois para a Secretaria de Saúde de Belém, onde conseguiu a primeira oportunidade, de fato. Na Sesma, o coração cheio de gratidão e de sonhos da jovem técnica de enfermagem dão leveza à agulha que ela introduz nos braços de, pelo menos, 200 pessoas por dia, nos postos de vacinação contra a covid. Dessas felicidades que se têm na vida, ela foi a vacinadora dos próprios pais. José Raimundo Foicinho, de 78 anos, e Nilde Carmem Foicinho, de 77 anos.

dedicação

Sorte que um outro paciente que ela vacinou não teve. Ele havia perdido o pai, a mãe e a esposa. “Com uma perda a gente tem que ser muito forte, imagina 3 pessoas que amamos”. E ela sabe que medo foi esse.

Roberta, a filha dela, postivou, já na UTI, para o novo coronavírus. Um elemento a mais para o quadro já complicado da filha. A dor da saudade de estar distante de um filho doente só não foi maior do que a esperança em vê-la curada. E quem duvida que o amor de uma mãe também não tem esse poder? Depois da fase mais dura no hospital, a pequena Roberta voltou para casa e para os braços da mãe, que agora batalha em prol da imunização dos belenenses e para entrar no ensino superior.

 

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