Hereditárias de sempre

A CPI da pandemia poderá chegar a lugar nenhum, como todos consideram mais provável, mas está propiciando aos brasileiros novas razões que justificam o sentimento de que o país não pode dar certo. Estão presentes elementos que caracterizam revanchismo, hipocrisia e arrogância, arrematando o conjunto de sentimentos e propósitos com o oportunismo. Evidenciam as preocupações em defender interesses pessoais, atender a conveniências ideológicas, proteger patronos políticos e salvaguardar herdeiros eleitorais. Questionamentos e pronunciamentos retratam a persistência da cultura hereditária, implantada a partir da expedição de Martim Afonso de Sousa, em 1530.

Para que se tenha idéia dessa predominância centenária na vida brasileira, vale recolher as informações publicadas pelos próprios institutos relacionados à atividade política e parlamentar. Segundo levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) e do site Congresso em foco, estão atualmente no desempenho de mandatos 172 deputados, correspondente a 33,5%, com algum grau de parentesco político, e 24 senadores, representando 30% dos 71 senadores, apesar da grande renovação em 2018, porquanto já houve ano em que 60% dos eleitos eram ligados a tradicionais oligarquias políticas, em muitos exemplos perdurando a sucessão de pai para filho durante décadas.

Qualquer semelhança entre os donatários das capitanias hereditárias e os predomínios eleitorais não será mera coincidência, embora a diferença básica seja de ordem física, como a primeira divisão administrativa e territorial implantada pelos portugueses durante a colonização da América Portuguesa. As faixas de terras também passavam aos herdeiros dos respectivos donatários, detendo direitos e deveres, como o de conceder aos colonos sesmarias, que eram grandes extensões de terras. Tal sistema foi implantado na década de 1530, sendo as terras entregues pela coroa portuguesa a partir de 1533, conferindo preferencialmente aos nobres portugueses o direito de explorar a região chamada de capitania.

Entre tantas perguntas que não querem calar, ecoa "quantas gerações seriam necessárias para purificar a atmosfera político-partidária brasileira, diante da dificuldade em utilizar mecanismos democráticos necessários à drástica mudança nas regras partidárias e eleitorais. Coube ao saudoso ministro Teori Zavascki, então relator da “Lava Jato” no STF, uma das frases explicativas, dizendo que “se puxa uma pena, vem uma galinha”, acrescentando que “O País está enfermo, às voltas com graves crises na área de natureza econômica, política e ética. Sem dúvida, é preciso que as enfermidades sejam tratadas, como estão sendo, e que tenhamos a coragem de ministrar os remédios amargos, quando necessário”. 

Contudo, nada sinaliza que venham a ser sepultadas as vitaliciedades e hereditariedades, e restabelecidas a ética e a credibilidade na vida pública brasileira. Pelo contrário, mudanças convenientes têm deixado tudo como está, ou até pior, capazes e tornarem atual a frase de Rui Barbosa, com a qual, desolado com as más práticas já naquela época distante, fizeram a "Águia de Haia" fundar as bases dos Tribunais de Contas. Disse ele, então, que, "De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.