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O Círio dentro de um livro

Vilma Reis / Especial para O Liberal

Meu Círio 2021 começou em 1º de julho quando recebi essa mensagem vinda de Lisboa: “Bom dia, Vilma. Acaba de sair o meu livro Diário de viagem pelo Brasil, 1999-2000, e gostava de te enviar um exemplar. Para que endereço? - O caso é que o ponto culminante das duas viagens é o Pará, incluindo Belém e os nossos comuns amigos. Saudades e um abraço. António”. Eu ainda não sabia. Mas nas páginas deste livro estava minha romaria nazarena deste ano.

António Vieira nasceu em Lisboa, em 1941, onde estudou Medicina, vindo a especializar-se em psiquiatria. No seu percurso universitário, ensinou Psicopatologia, Antropologia Pré-histórica, Etologia e Evolução Humana. Atualmente, trabalha exclusivamente em literatura, já publicou ficção e ensaios. Eu o conheci há uns anos em Belém. Ele estava com Gilda Oswaldo Cruz, pianista e escritora carioca, sua companheira. Desde então me correspondo com o casal, e é sempre com imensa alegria que os encontro.

O livro chegou e eu imediatamente o devorei. Logo surgiu aquela inquietação para saber a opinião do António sobre a minha terra. A ansiedade foi-se apaziguando a medida que mergulhava naquele relato. A primeira descrição: “A chegada a Belém traz consigo um mundo bem diferente: calor e umidade, traços índios em quase toda a população, mulheres de beleza exótica. Surpreendente Belém do Pará! Extensas praças coloniais elegantes e decadentes, ladeadas por casas antigas, palácios de traço colonial; avenidas com centenas de mangueiras viçosas; igrejas barrocas; um forte português, com seus rudes e inconfundíveis canhões. Aderimos logo, e por misteriosa empatia, a esta cidade e, nela, vivemos uma metamorfose interior. Como se, de súbito, descêssemos ao mundo do mito, mas de um mito vivo, do qual participamos logo.”

A partir desta página já me era incontrolável o sentimento de pertencer àquela realidade – viajei para o meu país que se chama Pará através da sensibilidade do António. Inesquecível o primeiro contato dele com Benedito Nunes: “Telefono então ao filósofo Benedito Nunes a quem nos tinham recomendado, por forma a combinar um encontro. Digo-lhe quem somos e de onde vimos. Aceita receber-nos, amanhã já. «Mas amanhã não é possível, viajaremos para a Amazônia» E ele responde: «Mas vocês já estão na Amazônia…».

Durante a estadia em Belém, o casal viajou até uma estação científica em Caxiuanã e é um dos momentos mais emocionantes para mim: “Saímos de Caxiuanã: foi uma estadia breve face ao tempo dos astros, mas longa para o tempo vivido. Depois da vinda aqui ficámos, e permaneceremos, algo diferentes. Olho, de um lado, a sarça alta da floresta, do outro, os volumes reduzidos da estação científica – mas é como se estivesse um pouco ausente: Caxiuanã já saiu do meu mundo imediato e passou para a ficção. O lugar e seus mistérios tornaram-se-me realidade virtual. Costuma acontecer-me assim quando estou de partida de um lugar forte ao qual devo renunciar dentro de um tempo contado.”

Nestes tempos difíceis, nos quais perdi tantos paraenses queridos, meu Círio aconteceu por dentro da narrativa do António Vieira. Para o ano espero viajar até Belém com o livro na mala e reler tudo isso na beira do rio-mar, depois de ver a santinha passar.

 

Vilma Reis é jornalista paraense e vive em Coimbra

vilma.reis@gmail.com

 

 

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