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Moda: estampas marajoaras e letras de barcos marcam nova estética amazônica

Conheça a força da identidade marajoara estampada em roupas e pintada nos barcos que atravessam o Pará

Ize Sena/Especial para O Liberal
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Dos campos marajoaras, na vasta imensidão da Ilha do Marajó, emergem cultura, ancestralidade e estilo de vida que influenciam não somente a economia local, mas a moda autoral vestida com orgulho por quem faz dessa produção um modo de valorizar a história de um povo.

É assim a filosofia que guia o negócio e a vida da empreendedora Rosilda Angelim, de 55 anos, dona da marca autoral Cañybó. Nascida na comunidade Quilombo do Bairro Alto, no município de Salvaterra, Rosilda trabalhou por 16 anos como funcionária pública. No entanto, a costura sempre fez parte do seu dia a dia. O ofício inspirado na profissão da mãe é considerado por ela como um “dom”.

Das mãos criativas de Rosilda já se originaram roupas escolares e algumas peças com pintura e serigrafia, mas as peças com traços marajoaras vieram para transformar a sua história de vida.

“Foi dando muito certo o que eu estava fazendo, trabalhando com a parte cultural da nossa identidade. Começaram a sair muitas peças e houve a necessidade de criar uma marca para poder registrar a patente”, conta Rosilda que destaca ainda o motivo de ter escolhido Cañybó para representar o negócio: “o nome é uma palavra da língua Tupi Guarani que significa ‘Quilombola - em busca de algo melhor’.

Com mais de 30 anos no ramo da costura, Rosilda destaca que a grande virada de chave para alavancar o negócio veio em 2024, quando a bailarina Alane Dias usou duas peças durante o Big Brother Brasil. O vestido Casa de Negro na cor vermelho e a camisa Colar ganharam projeção nacional e hoje, as blusas, por exemplo, são o carro chefe de uma produção, sediada em Soure. “Eu nomeei as camisas assim porque a gente faz aplicações de grafismo que, na minha visão, é um colar. Quando você usa, não precisa mais de acessório no pescoço. É uma peça clássica, de malha, bem simples, mas que as pessoas usam muito”, descreve Rosilda.

Entretanto, a produção de Rosilda reserva espaço para outra peça tão singular quanto a própria história do lugar onde a Cañybó está sediada. A Ilha do Marajó é cercada por encantarias, lendas, mitos e crenças. E é lá que a camisa do vaqueiro marajoara se torna única. 

“É uma peça tradicional. É uma das nossas maiores riquezas. A riqueza maior, na verdade, são os nossos grafismos marajoaras que os nossos ancestrais deixaram para a gente nas cerâmicas e através do padre Giovanni Gallo, que deixou uma riqueza imensa no livro dele ('Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara’, 1996), onde a gente abre o livro e se conecta, viaja e tem uma facilidade muito grande de criar as nossas peças”, revela Rosilda, sobre a inspiração.

Ao refletir sobre suas obras, Rosilda Angelim diz que faz questão de andar com a roupa que criou, como forma de se autoafirmar como mulher negra, quilombola e marajoara, um completo símbolo de resistência. “A vestimenta marajoara é a minha existência. Quando eu saio, que não estou com roupa que tenha algum grafismo, não sou eu. Para onde eu vou, levo minha identidade estampada em mim. Eu me sinto nua se eu sair para qualquer canto, se eu não tiver vestida como alguma peça que identifique a minha identidade, resistência e ancestralidade de mulher preta que sou”, afirma.

Origem

Apesar de estar em alta, usada por artistas e autoridades e vista até em passarelas, as roupas com a marca marajoara surgiram, à princípio, com outra finalidade, segundo Felícia Assmar Maia, pesquisadora de moda e mestra em Artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e coordenadora do Bacharelado em Moda  da Universidade da Amazônia (Unama).

“A camisa do vaqueiro marajoara surgiu com trabalhadores rurais que lidavam com gado e tinham camisas feitas por suas esposas para protegê-los do sol escaldante da região. A matéria-prima eram sacos de algodão lavados e reaproveitados. Numa evolução, as camisas passaram a incorporar o grafismo da arte marajoara das cerâmicas, com o objetivo de identificar a origem do vaqueiro. Com o tempo, o tecido passou a ser algodão ou linho com bordados em galão ou ponto cruz. Esse item do vestuário marajoara se torna, então, um símbolo da cultura paraense, representando a identidade e a história da região”, destaca a professora.

A pesquisadora lembra ainda que este símbolo cultural foi recentemente alçado ao posto de item de moda e está na tendência do mundo fashion em função do movimento de globalização e da necessidade de fazer reação a um processo provocado por ela: a padronização do modo de vestir. “À medida que as culturas se tornam mais expostas a influências externas, as identidades locais enfraquecem podendo conduzir a uma homogeneidade cultural, ou, de forma alternativa, levar a uma resistência que fortalece e reafirma algumas identidades locais. A busca por raízes aparece na relação inversa à quebra de barreiras espaciais, ou seja, quanto mais próximas estiverem as sociedades, maior será o incentivo para que os lugares se diferenciem”, analisa Felícia Maia.

Saber ribeirinho inspira vida e vai além da moda

image Tradição da pintura das letras escreve uma trajetória marcada pela resistência da vida ribeirinha (Divulgação)

Não são somente as peças com o selo marajoara de qualidade que fazem sucesso no guarda-roupa. Outra tendência da moda amazônica bebe na fonte que vem dos rios da região, por onde os barcos são o meio de transporte mais comum, tanto de pessoas quanto de mercadorias. São nas embarcações fabricadas na própria região, que se encontram as chamadas “Letras de Barco”.

Essas letras são comumente utilizadas para identificar as embarcações, que por uma exigência da Capitania dos Portos, precisam ser designadas com nomes pintados nas proas. Mas elas vão além: escrevem uma trajetória marcada pela resistência da vida ribeirinha ao mesmo tempo em que servem de inspiração para as peças.

As “Letras de Barco" são o objeto de estudo de Fernanda Martins, designer e pesquisadora, e atual diretora geral do Instituto Letras Que Flutuam. “Pesquiso as letras decorativas amazônicas desde 2004, sendo a responsável pela ampliação da percepção deste saber como patrimônio imaterial amazônico. Minha monografia de especialização no Instituto de Ciências da Arte (ICA) da UFPA, em 2008, trata deste assunto. Desde então, temos divulgado os mestres abridores de letras e seu saber. Um saber que vem sendo desenvolvido e  navega os rios amazônicos desde a implantação de uma legislação que obriga que os barcos sejam identificados, com seus nomes e registros pintados em seus costados”, explica.

Fernanda destaca que, apesar do sucesso no mundo da moda e nas redes sociais, o uso das letras pode revelar um cenário desafiador para os verdadeiros autores. “É a velha  história da apropriação cultural, e do apagamento dos saberes tradicionais que tanto conhecemos. A partir da maior divulgação do saber ribeirinho da abertura de letras em barcos, a letra de barco foi assumindo um caráter identitário forte na Amazônia, em especial no Pará. Nos últimos anos, publicitários, influencers, ilustradores e designers começaram a utilizar estas letras em produtos tomando emprestados os valores de identidade amazônica que estas letras carregam. Infelizmente esta apropriação não beneficiou nem tem beneficiado os verdadeiros detentores deste saber, que se estavam invisibilizados até 2008, agora estão sendo duplamente apagados”, aponta.

Valorização

Na contramão do uso das “Letras de Barco” de forma a acompanhar apenas uma trend, o trabalho desenvolvido por Fernanda também lança um alerta sobre a importância da valorização de quem faz esse saber se manter vivo ao longo das gerações.

"O Instituto Letras Que Flutuam tem trabalhado junto aos detentores deste saber com o objetivo de torná-los protagonistas nesta inserção no mercado. É importante frisar que é mais importante um abridor de letras seguir vivendo em seu município de origem sendo capaz de prover boa qualidade de vida a seus familiares do que ser transformado em um superstar da arte de uma trend da moda que dura alguns meses. O que vai acontecer com este artista ribeirinho quando essa modinha passar? Aquele que deixou suas raízes, saiu de seu município para morar na capital acreditando que a vida havia mudado? Moda trabalha com tendências, e estas tendências mudam a cada estação. É preciso mais responsabilidade e inclusão, é preciso políticas públicas de fortalecimento da cultura ribeirinha”, defende a pesquisadora.

 

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