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O que a crise do Coronavírus em Nova York pode ensinar aos paraenses

Moradora de Nova York há 18 anos, a jornalista paraense Carmem Passos fala como a pandemia do novo Coravírus mudou a face da “cidade que nunca dorme”; faz um paralelo com a Amazônia e o que podemos aprender com a experiência dos moradores da metrópole que se tornou no novo epicentro da pandemia no mundo.

Carmem Passos
fonte

Com a rotina da maioria das pessoas suspensa pela Covid-19, é difícil não ver a pandemia mundial de 2020 como uma tragédia de proporções bíblicas, mesmo para quem é uma ateia como eu.

Também é difícil não pensar em um poema do Antigo Testamento (Eclesiastes 3. 1-13). Segundo a passagem, há uma "estação" e um "tempo" para tudo. Bonita e cheia de sabedoria, a mensagem dessa passagem é cantada pelo cantor folk americano Peter Seeger que a adaptou para a música “Turn! Turn! Turn!" (“To Everything There is a Season”), gravada pela primeira vez em 1959.

Desde o meu primeiro contato com a cidade de Nova York, no inverno de 2002, observei e aprendi que a maioria dos nova-iorquinos realmente concorda com a noção de que nem mesmo o sono pode atrapalhar a vida na Big Apple. Seus sistemas de metrô, ônibus, balsas e muitos outros serviços públicos e privados continuam dia após dia, mês após mês, ano após ano. 

Por isso é chocante andar e/ou dirigir nas ruas vazias da cidade com quase a totalidade de seus negócios fechados durante a atual pandemia.

No sábado, 4, para fazer as imagens que ilustram este texto, saímos, meu marido e eu, para um dar uma volta rápida pela cidade. O que vimos surpreende até mesmo  quem está acompanhando o noticiário sobre os impactos da pandemia. Exceto serviços essenciais como farmácias, tudo parou na cidade.

image Lincoln Tunnel (Carmem Passos)

Muito se pode aprender agora com os residentes de “A Cidade que Nunca Dorme”, que, com poucas exceções, obedecem às diretrizes dos gestores de saúde e às regras adotadas pelas autoridades para retardar a propagação do Coronavírus e suas consequências, ou seja o colapso do sistema de saúde e maiores taxas de mortalidade que podem ser evitadas com o atendimento médico. 

Ao longo dos últimos anos, visitei a maioria das grandes cidades, vilas e pontos badalados da América do Sul e do Norte, Europa Rússia e o Norte da África e não consigo imaginar uma cidade com residentes com mais medo de parecer provincianos  do que os de Nova York. 

Portanto, manter a cidade em constante movimento é uma maneira desafiadora de mostrarem-se especiais.

image Macys & Empire State Building (34th St.) (Carmem Passos)

Para a maioria dos nova-iorquinos, a cidade tem um passado histórico. O mais importante, contudo, são o presente e o futuro.

É um contraste bastante marcante, por exemplo, com Londres e Paris, duas grandes metrópoles com as quais Nova York normalmente é comparada.

Londres costumava ir para a cama às 20h30. Melhorou pouco, mas não tanto. Paris tem mais a ver com romance do que com negócios e, como uma bela caixa de presente, pode encantar o presenteado com a embalagem (que bela arquitetura e rica história tem Paris!) e desapontá-lo com o que está dentro dela (talvez Paris precise de encanadores melhores!)

Marcada por tragédias

Dito isso, os nova-iorquinos entendem que agora é 'hora de fazer uma pausa'. É  'hora de desligar'. Talvez tiveram que aprender como reagir nesses momentos da maneira mais difícil. NYC não é estranha à tragédia. Quando cheguei aqui, 18 anos atrás, a cidade ainda estava se recuperando do ataque ao World Trade Center (WTC), que matou milhares. A poeira ainda estava nas calçadas da parte baixa da ilha Manhattan e pilhas gigantescas de detritos ocupavam o local onde antes estavam  as Torres Gêmeas.

Desde então, tenho testemunhado outras grandes perturbações da vida cotidiana enquanto moradora de Nova York (Soho e East Village) e seus arredores.

Em 2003, por exemplo, Nova York fechou completamente durante o apagão da Região Nordeste dos Estados Unidos, que deixou 14 milhões de habitantes da cidade e seus subúrbios no escuro. 

Em 2012, o furacão Sandy atingiu NYC, Jersey City e alguns outros lugares em Long Island e os Estados de Nova Jersey e Connecticut, inundando ruas, túneis, linhas de metrô e trem cortando o fornecimento de energia de milhares. Houve alguns tantos outros eventos como este antes do meu tempo por aqui. 

Biscoitos duros

Meu marido Eric, por exemplo, cresceu ouvindo seu avô contar como sobreviveu à gripe espanhola de 1918: andando de patins nos parques abertos para escapar dos cortiços lotados do Flatbush Brooklyn.

Em cada uma dessas crises, os nova-iorquinos foram capazes de mostrar de que material eram feitos. Posso afirmar: os nova-iorquinos são, como costumam dizer, “tough cookies”  (biscoitos duros). Em uma cidade onde o aluguel é “pretty damn high” (obcenamente alto) e ganhar dinheiro para cobri-lo mais difícil ainda, muitos de seus moradores adquiriram alguns estereótipos: arrogantes (caçada eterna pelo melhor de tudo: melhor pizza/melhor bagel/melhor ramen ), sempre com pressa (turistas, não fique do lado esquerdo da escada rolante e mantenha-se à direita nas escadas comuns), bastante impacientes (faça seu pedido de comida o mais rápido possível), às vezes falam muito alto ( ah, sim, esse sotaque dos bairros do Brooklyn e/ou Queens se destacam em uma grande multidão também porque eles são também distintamente altos) e até rudes (oh, Deus, 

esses usuários de mochilas e “manspreaders”/homens com pernas super abertas ao sentar no metrô lotado na hora do rush) e a lista continua.

Eu passei a aceitar tudo isso como um jogo justo. Por quê? Porque os nova-iorquinos, no entanto, têm um bom senso de “timing”: eles avaliam muito bem quando é um momento de deixar de lado o “bullshit”  (besteiras). Em sua vida cotidiana, os nova-iorquinos não ousariam ficar muito tempo em uma mesa de restaurante ou passar horas tomando café em um bar/café como os parisienses fazem com a maior tranquilidade/naturalidade. Isso seria roubar do dono do restaurante/bar/café o direito a uma renda justa. 

Esse senso de “timing” é mais perceptível ainda durante as tragédias e os nova-iorquinos são capazes de abdicar de muito “bullshit” e mostrar compaixão/solidariedade e o desejo de seguir a lei. 

Durante o apagão do verão de 2003, por exemplo, não houve saques ou atividades criminosas extras perceptíveis, algo que muitos poderiam esperar na cidade de quase 9 milhões de habitantes no escuro total.

Portanto, é justo dizer que agora, com a Covid-19, os nova-iorquinos entendem a seriedade da situação e o que se espera deles.

Da mesma forma, os brasileiros devem entender o que se espera deles agora e, portanto, passem a agir em conformidade. Para alguns falsos profetas, como o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido), a vida e o emprego são agora e para sempre mutuamente exclusivos e os brasileiros devem decidir agora entre um ou outro. É uma falácia horrenda. 

Os empregos ou a vida?  

É verdade que a atividade econômica desacelerará. É verdade que muitos irão sofrer. Mas a verdade mais importante é que ninguém deve ser forçado a enfrentar uma morte/doença estúpida desnecessariamente. Podemos ter, no tempo certo, os empregos. É apenas uma questão de tempo/planejamento. 

O preço de ter os dois agora é muito caro. A propósito: qual é o sentido de ter um emprego agora ou “guardá-lo” para o futuro próximo se você não estiver por perto para receber seu salário?

Acredito que os brasileiros devam pensar em uma palavra-chave que têm muito em comum com os nova-iorquinos: resiliência. Duas definições são: “a capacidade de se recuperar rapidamente de dificuldades; resistência ”e“ a capacidade de se recuperar rapidamente de dificuldades; dureza".

É bastante difícil pensar em uma palavra que melhor descreva a vida dos nova-iorquinos em geral e dos brasileiros em particular, especialmente para aqueles que vivem na Amazônia ou no Nordeste do Brasil.

 Nova York é muito parecida com o Brasil em termos de disparidades. É uma cidade com um dos maiores números de bilionários e que também possui um dos distritos mais pobres dos EUA (South Bronx). É também uma cidade para quase todos os bolsos e gostos e que se orgulha de sua diversidade racial e de sua individualidade. Portanto, não é o cenário perfeito para o pensamento em grupo. No entanto, a maioria dos nova-iorquinos parece concordar com a seriedade do momento e com as medidas que estão  sendo adotadas pelas autoridades sérias e responsáveis.

Como tal, eu sugeriria que os brasileiros não prestem atenção aos balbucios dos falsos profetas e sigam os conselhos das autoridades de saúde e a sabedoria do poema em Eclesiastes. Agora é a hora e o momento de ficarmos juntos no distanciamento social. Esta é a hora de cuidar daqueles que não podem se proteger ou cuidar de si mesmos, especialmente  crianças e  idosos. É um momento de mostrar compaixão/solidariedade.

E amanhã, à medida que a vida continuar e voltar a rotina, haverá um tempo para nós, brasileiros e nova-iorquinos, lambermos nossas feridas e reconstruirmos nossas economias com a típica "arrogância" dos nova-iorquinos e fazê-lo ao estilo de Nova York: no nível/quantidade de energia de alguém que está no topo do mundo e que não aceita mais nada além do melhor. 

Quando chegar a hora, vamos restaurar nossa economia/empregos e fazê-lo como na música imortalizada por Frank Sinatra: como alguém que é “the king of the hill”(rei da colina) e que está “on the top of the world” (no topo do mundo).

Sobre a autora: Carmem Passos é formada em jornalismo pela UFPA. No Brasil, trabalhou nos jornais A província do Pará, Diário Pará e Gazeta Mercantil,  Tem MBA pela Rutgers Business School (RBS) e hoje dedica-se à administração de ativos privados de família.

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