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Nenhuma dor justifica a desumanidade

A jornalista, mestre em Ciência Política e uma das editoras deste site, Rita Soares expõe tragédia familiar ao falar sobre o atraso civilizatório que é comemorar casos como a matança de presos em Altamira

Rita Soares | Conexão AMZ
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Há 14 anos, uma tragédia marcou para sempre a minha história e da minha família. Perdi um primo morto a facadas.

Foi um ato bárbaro: o jovem tímido, obediente e muito católico - filho da minha tia e madrinha Helena -  dormia, seminu, dentro da  casa invadida por ladrões. Acordou atordoado e foi covardemente atacado até a morte.  A imagem até hoje nos traz pesadelos.

O fato ocorreu na madrugada do dia 29 de julho em 2005, no Amapá. Dia 29 de julho foi também a data da matança que deixou 58 mortos, entre decapitados e queimados vivos em um presídio de  Altamira, no Pará. Recorro a essa infeliz coincidência para falar  aqui de barbárie, crise da civilização e da fala do presidente Jair Messias Bolsonaro que, ao ser questionado sobre o massacre no presídio paraense, disparou:  “pergunte às famílias das vítimas dos que morreram lá”.

Nas redes sociais, uma avalanche de comentários saudou a fala de Bolsonaro pela “sinceridade”. Muitos outros comemoraram os mortos.  “Mais 58 CPFs cancelados”, li em um grupo de Whatsapp. “Tiveram o que mereceram”, afirmaram em outro.

Recorro à minha tragédia pessoal e familiar porque não vou negar que, em meio à dor, à revolta, desejei ardentemente vingar a morte do meu primo querido. É da natureza humana, arriscaria eu, desejar o revide.

Mas é nesse momento que se faz necessário o Estado, a sociedade civil, o processo civilizatório.  E não se trata aqui de dar a outra face ou perdoar setenta vezes sete. Não.  Meu texto não se inspira na Bíblia, aquele livro que muitos dos que comemoram o massacre em Altamira dizem ler diariamente.
Minha base vem dos mundanos contratualistas. Aqueles caras chatos que todo estudante do ensino médio já ouviu falar nas aulas de Sociologia entre um bocejo e outro.

Diz a Teoria contratualista que os homens viviam no Estado de Natureza, onde cada um resolvia seus conflitos à sua maneira, com as próprias armas. Evidentemente isso levaria à guerra de todos contra todos e ameaçava a própria existência da humanidade.

Para evitar tal desfecho, firmamos um contrato social. Delegamos funções ao Estado e, assim, viemos parar aqui, neste mundo com leis, regras, normas e um presidente chamado Jair Messias Bolsonaro, que parece debochar dos princípios básicos do Estado que ele agora representa.

Ao mandar que repórteres procurem as famílias das vítimas dos mortos de Altamira é como se Bolsonaro nos dissesse: abram mão da sociedade civil, das leis, da Justiça.  Voltem ao Estado de natureza. Saúdem a vingança, a barbárie.  Deem fim ao império da lei.

E é com isso que concordamos quando aceitamos com naturalidade e, pior, sob aplausos, que 58 indivíduos sejam encurralados, decapitados, queimados vivos.
“Lá não tinha ninguém bonzinho”, alguém argumenta. É possível que não. Mas comemorar o amontoado de cabeças em sacos plásticos e o odor fétido dos corpos queimados impregnado  nas narinas de pais, mães, esposas e filhos nos faz incomparavelmente piores do que aqueles a quem julgamos e condenamos, não sob o império da lei, mas sob o império do que há de mais primitivo em nós.

Desejar abrir mão do mínimo  de dignidade, mesmo para aqueles que nos fizeram muito mal, é colocar em risco nossa própria humanidade. 
“Falar em dignidade para vagabundo é fácil, porque não foi com você”, é o que ouço às vezes quando falo de direitos humanos.  Não me venham com essa. Minha história pessoal e familiar está aí. Já estive no  lugar de vítima, sei a dor que é e sei também que tragédia maior seria aderir à barbárie em nome da minha dor.

Este texto não é uma defesa dos mortos de Altamira, mas sim de pais, mães e filhos que perderam filhos para a violência, incluindo minha tia Helena. São pessoas que sofreram um trauma, muitas vezes irrecuperável, mas que podem acordar, olharem-se no espelho e dizer: “mesmo diante do ódio e da covardia, eu não me desumanizei”.

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