Homens desafiam preconceito em negócios que decolaram na pandemia

Na confeitaria e no artesanato, jovens deixam estereótipos da masculinidade para trás e faturam alto na internet

Eduardo Laviano
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Muitas mulheres foram distanciadas de diversos ofícios de maneira compulsória por conta da sociedade patriarcal, mas os estereótipos de gênero também afetaram homens ao longo dos séculos, com poucos deles tendo a oportunidade de exercer atividades tidas pelo senso comum como femininas ou até desvirilizantes.

Mesmo assim, muitos homens se destacaram na arte da confeitaria, por exemplo, como Antonin Carême, que viveu de 1784 a 1833 e elevou a arte de cozinhar com farinha de trigo a uma profissão respeitada, além dos inúmeros estilistas e costureiros que tomaram a moda no início no século XX, como Cristóbal Balenciaga, que mais tarde inspirou outros homens do ramo, como Hubert de Givenchy, Yves Saint Laurent e Oscar de La Renta.

Nada disso livra o estudante de engenharia civil Renan Rocha de receber olhares de desconfiança de alguns clientes. Ele tem 24 anos e durante a pandemia de covid-19 começou a fazer tortas, bolos e doces para vender e garantir uma renda extra. Na opinião dele, ser homem acaba atrapalhando o empreendimento às vezes. 

"Eu não me sinto diferente por ser um homem confeiteiro. Antigamente só tinha mulher mas hoje em dia vemos lugares com homens fazendo bolos, trabalhando na cozinha de confeitaria. Isso está ficando mais comum. Mas as pessoas mais velhas não acreditam que sou eu quem faço. Veio uma cliente e perguntou se era minha mãe ou minha irmã que fazia tudo. No geral, acho que não confiam que um homem pode fazer um bolo gostoso. A nossa visão é desconstruída, mas algumas pessoas só querem comprar se for feito por mulher mesmo", diz ele.

O que era para ser uma grana extra virou renda principal. Em meses comuns, o universitário chega a faturar entre R$1,5 mil e R$2,5 mil. Se o mês é de Páscoa, Natal ou alguma outra data importante, os ganhos chegam a triplicar.

Hoje, ele reflete com bom humor sobre o caminho que o levou para esta profissão que nunca nem tinha sido uma possibilidade para ele antes da pandemia de covid-19. 

"A minha mãe não estava trabalhando e não queria pedir dinheiro para comprar presente para o Dia dos Namorados para a minha namorada. Então montei uma sobremesa para dar de presente. Aí bati uma foto e perguntei para uns amigos se eles comprariam. Eles disseram que sim e acabei vendendo o presente da minha namorada. Aí tive que fazer outros e com o lucro consegui comprar o presente dela", conta.

image O estudante chega a trabalhar 12 horas por dia em dias de alta demanda (Thiago Gomes/O Liberal)

Renan já fazia doces antes, mas só para si mesmo. Ele começou então a ver vídeos na internet sobre como torná-los mais bonitos. Decidiu postar as criações no Instagram diariamente, os amigos começaram a compartilhar e voilá: do dia para a noite ele se viu migrando de uma encomenda por dia para dez.

Ele afirma que não estava esperando por isso e acabou ficando "agoniado" em casa. Mas depois se acalmou e hoje chega a trabalhar de 10 a 12 horas por dia, quando o volume de demandas é muito alto. 

"Com o sucesso, tenho vários amigos homens que falam que futuramente querem ser meus sócios em uma doceria. Mas não querem aprender a fazer de confeitaria. Um amigo já me pediu para eu ensinar a fazer hambúrguer para fazer. Historicamente, quem faz carne, o churrasco, são os homens. Churrasco da família tem sempre aquele tio que faz", ele avalia. A reportagem acrescenta que sempre há uma tia que leva a torta de limão e ele responde brincando: "pois é, só que nesse caso [a tia que leva a torta de limão] sou eu". 

O estudante sonha em conciliar a vida de engenheiro com a de confeiteiro e fala que tem aprendido muito com a nova profissão, principalmente quando o assunto é planejamento e economia. 

"Falar dos custos é complicado porque com essa inflação todo mês tem aumentado o valor de alguns produtos, como o leite condensado. Quando comecei eu conseguia comprar a R$3,55 e hoje em dia o valor mais comum é R$4,90. Tem que planejar os gastos com médias, estimar a demanda. Não posso pensar só no lucro, tenho que pensar enquanto cliente, para chegar a um preço justo. Faço compras mensais. As embalagens já vou comprando tudo de uma vez, sabe? E recentemente eu comprei uma panela mexedora de brigadeiro automática e uma batedeira planetária. Pretendo investir cada vez mais na minha produção", planeja ele que produz tudo na cozinha de casa.

Assim como Renan, João Paulo Silva sonha em ter um espaço físico próprio no futuro. Ele é um tecelão de macramé, arte milenar que traça fios que viram suportes para vasos, tapetes, chaveiros e diversos outros itens.

Apesar do nome francês, na verdade a palavra deriva de 'migramah', o termo árabe para 'proteção'. Os espanhóis absorveram a técnica dos mouros e a espalharam pelo sul da Europa no início do século XIV.

A arte ganhou força na Itália e depois se estabeleceu durante todo o período vitoriano na Inglaterra, com forte presença na decoração de casas, das mais nobres às mais simples.

"Por muito tempo fiquei em choque comigo mesmo por ser um homem que faz macramé, mas depois de algum tempo parei para pesquisar a história de como e onde ele surgiu e descobri que o macramê começou com os homens e não com as mulheres, que vem dos navegantes, que faziam para levar aos portos onde paravam para trocar por alimentos, roupas, objetos. Foi muito interessante essa descoberta para mim. Só no século XX que as mulheres começam a mexer. É uma técnica que mulheres aperfeiçoaram, graças a Deus, mas quando trabalho me sinto voltando ao ponto de partida", conta ele.

O universitário de 28 anos iniciou a enlaçar nós em 2020, após a morte do avô que para ele foi um pai. Ele conta que usou o macramé para ocupar a cabeça e preencher o vazio da saudade.

Começou apenas presenteando as pessoas, orgulhando-se de, em meio à tristeza, conseguir criar coisas belas. Ele então foi se aperfeiçoando com a ajuda da professora Suzy Santos e da amiga Jessica Ayala. 

"Eu ia fazendo no meu perfil pessoal e vinha uma encomenda aqui e ali. Não era uma renda alta mas ajudava muito. quando comecei a estagiar, acabei diminuindo o ritmo. Uma prima me contou da feira autoral Antonieta, que a Gisele Ramalho faz com vários microempreendedores. E adivinha? Lá só tinham mulheres. Me veio o choque de novo do estereótipo. Mas aprendi muito com mulheres a vida toda", conta ele.

Ao conhecer outros profissionais, ele descobriu novos nós. Antes, ele diz que só sabia o nó DNA e tinha certeza que já sabia de tudo. Outra certeza dele que caiu por terra foi a de que ele não queria mais voltar para o ramo da comunicação, mas quando abriu a loja virtual precisou estudar mais sobre redes sociais. 

"O Instagram é uma ferramenta muito incrível, mas me sinto leigo ainda. mas fui levando a loja. Desde o Natal parou um pouco movimento. Tinha mês que vinha 10, 15 encomendas por mês. Também dei uma parada porque adquiri um problema no meu punho de tanto fazer. Dói de vez em quando, mas ainda estou investigando o que é. hoje, o que eu fazia em dois dias, agora levo três, quatro dias. É uma renda extra, mas entendo que é o que eu quero para vida", conta ele ao lembrar que espera ensinar crianças, homens e mulheres no espaço físico que ele sonha em abrir. 

image João começou no macramé para superar perda do avô e hoje ganha dinheiro com a própria arte (Arquivo pessoal)

Os preços variam entre R$35 e R$45 reais para os suportes de vasos, que são os mais pedidos juntos com os chaveiros, que custam entre R$12 e R$18. Os clientes também são variados: tem quem goste muito de planta, tem quem ame decoração, tem quem queira comprar pois lembra da vó - e muitos deles são homens. 

"Você também luta com a hipocrisia da sociedade. por muito tempo orei sobre isso e tenho tido respostas muito positivas na minha vida. Muitos não valorizam também. Tem quem compre uma blusa da Zara aqui ou vai comprar um macramê pela internet e não valoriza a pessoa que é daqui e que compra materiais daqui e mede tudo certinho e faz personalizado. E ai diz que não vai pagar caro por um bando de fio", ele conta.

Cristão evangélico, João Paulo resume a virada que vida dele levou no último ano com uma passagem do livro Êxodo, da Bíblia, que sempre ajuda ele, em momentos de dúvida ou dificuldade, a lembrar que o talento dele é uma dádiva que não pode ser desperdiçada.

"É no capítulo 35, que diz assim: e o encheu do Espírito de Deus, dando-lhe destreza, habilidade e plena capacidade artística, pa­ra desenhar e executar trabalhos em ouro, prata e bronze, para talhar e lapidar pedras e entalhar madeira para todo tipo de obra artesanal. E concedeu tanto a ele como a Aoliabe, filho de Aisamaque, da tribo de Dã, a habilidade de ensinar os outros. A todos esses deu capacidade para realizar todo tipo de obra como artesãos, projetistas, borda­dores de linho fino e de fios de tecidos azul, roxo e vermelho, e como tecelões. Eram capazes de projetar e executar ­qualquer trabalho artesanal", recita.

Para o sociólogo Antônio Moreira, a sociedade determina funções, sentimentos e características distintas para homens e mulheres - e isso afeta as profissões. "Cozinhar é algo que vem do carinho, do afeto, de extremo cuidado. Valores associados às mulheres por motivo nenhum e, ao mesmo tempo, por todos os motivos. São construções sociais que imputam o preconceito que a gente cultiva desde criança. É a mesma surpresa de uma mulher dirigindo um caminhão ou cortando toras de madeira", avalia.

Ele conta, porém, que as mulheres muitas vezes são 'obrigadas' a exercerem as funções tidas como femininas, enquanto os homens as escolhem por opção. Segundo Moreira, alguns homens se sentem feridos no âmago ao verem outros homens terem menos amarras sociais e serem felizes com isso.

"Quando alguém subverte essa lógica, é uma transgressão. Hoje em dia é mais fácil, pois se alguém não conhece nenhum homem que cozinha na família, pode se sentir acolhido e normal na internet, onde há milhões de caras fazendo isso. Imagina na época da revolução industrial um homem cozinhar? Tudo isso só para dizer que a masculinidade é um mito. O que existem são as masculinidades, no plural, muitas delas. Cada homem com seu jeito de vivê-las", pontua. 

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