'Clientes nos confundem com garçons', reclama entregador de aplicativo

Trabalhadores de aplicativos de entrega destacam rotina de agressões e ofensas

O Liberal
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Agressões, ofensas e humilhações são casos recorrentes no cotidiano de entregadores de aplicativo. A Agência Brasil entrevistou trabalhadores no Rio de Janeiro e em São Paulo, e ouviu deles relatos sobre episódios constrangedores.

O caso mais recente a ganhar repercussão nacional foi o do entregador da plataforma iFood, Nilton Ramon de Oliveira, de 24 anos. Ele foi baleado por um cliente, que é policial militar, na última segunda-feira (4), em Vila Valqueire, zona oeste do Rio de Janeiro.

O motivo do desentendimento entre Nilton e o cabo Roy Martins Cavalcanti foi a exigência do cliente para que o pedido fosse entregue na porta do apartamento do PM. Diante da recusa do entregador, que expôs a regra da plataforma para se justificar, Nilton foi baleado na perna.

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Levado para o Hospital Municipal Salgado Filho, ele apresenta um quadro considerado grave. O cabo da PM se apresentou a uma delegacia, prestou depoimento e foi liberado. A Polícia Civil investiga o caso, e a Corregedoria da PM abriu um procedimento interno.

O iFood reforça que os entregadores não têm obrigação de levar os pedidos até a porta dos apartamentos. “A entrega tem que ser realizada no primeiro ponto de contato, ou seja, no portão da residência ou na portaria do condomínio. O que aconteceu com o Nilton é inaceitável e condenável”, diz a gerente de Impacto Social do iFood, Tatiane Alves.

Ela informou que a empresa entrou em contato com a família do entregador e se colocou à disposição para todo tipo de apoio. “Espero que o caso não fique impune e que o Nilton se recupere muito em breve. Vamos acompanhar de perto esse caso”, afirmou.

Bruno França trabalha como entregador no centro do Rio de Janeiro e conta que todos os dias acontecem casos de ofensas e desentendimentos entre clientes e entregadores. Para ele, a raiz do problema tem relação com o passado escravocrata do país. “Eu acho que a história de como foi construído o Brasil permeia até hoje. As reverberações do que aconteceu no passado influenciam a nossa vida. Não tenho dúvida de que isso tem ligação com o racismo. Muitos clientes, dentro de uma visão histórica escravocrata brasileira, acreditam que a gente tem que subir até o apartamento, colocar um babador e colocar comida na boca deles”, diz.

Outra queixa de Bruno é que a plataforma, na avaliação dele, não deixa claro para o cliente que os entregadores não são obrigados a fazer a entrega na porta do apartamento. “Todo dia acontece isso (desentendimentos) porque muitos clientes entendem que a gente é obrigado a subir”. Ele cita ainda que, eventualmente, há o descumprimento da lei em vigor na cidade do Rio de Janeiro, que proíbe a distinção no uso de elevadores entre social e de serviço.

O entregador também aponta a falta de direitos trabalhistas como um dos motivos para a categoria ser alvo de agressões e ofensas. “Marginalização em relação ao mundo do trabalho. Não temos direito algum. A gente vive em uma sociedade violenta. Dentro da perspectiva desses agressores, eles nos veem como alguém sem direitos e que pode ser agredido, pode ser violado.”

Rafael Simões faz entregas na cidade de Niterói, região metropolitana do Rio. Em conversa com a reportagem da Agência Brasil, pouco antes do meio-dia, ele avisou: “Vamos rapidinho porque está chegando o horário de pico, sabe como é, né?”

Ele compartilha da opinião de que o passado do país tem a ver com a forma como entregadores são tratados por alguns clientes. "O cliente acha que é obrigação (entregar no andar)", reclama. “A gente vive nessa sociedade assim. O pessoal está realmente pensando que a gente é escravo”, diz.

'Nós não somos garçons', diz entregador de aplicativo

"O cliente está confundindo entregador com garçom. Nós não somos garçons", reclama Rafael. Ele conta que muitas vezes o entregador opta por deixar o pedido na porta do cliente para evitar problemas e também não perder tempo esperando a pessoa descer, muitas vezes sem nenhuma pressa. “Às vezes, para evitar o problema, a gente sobe. Mas não é obrigação.”

A comparação de Bruno e Rafael com o período da escravidão no Brasil ganha mais significância ao trazermos de volta o caso de Max Ângelo dos Santos. Em abril de 2023, o entregador, que é negro, foi “chicoteado” com uma coleira de cachorro por uma mulher branca que se sentiu incomodada com a presença de entregadores em uma calçada, em São Conrado, bairro nobre na zona sul do Rio de Janeiro.

Outro caso de grande repercussão, também em São Conrado, foi o de um entregador que compartilhou nas redes sociais a abordagem feita por uma mulher que desceu até a portaria do prédio com um cutelo, depois de ele ter se recusado a subir para fazer a entrega.

Fora do Rio de Janeiro, desentendimentos e ofensas também são frequentes, afirma o presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativo e Autônomos do Brasil (AMABR), Edgar Franscisco da Silva, conhecido como "Gringo". Outro ponto de atrito recorrente, segundo ele, é quando há demora para a chegada do pedido.

Gringo atribui a recusa da entrega na porta do apartamento a uma busca por produtividade, uma vez que, pelos aplicativos de delivery, os trabalhadores ganham por quantidade de entregas.

“Se a pessoa já está na portaria na hora que o entregador chega, ele entrega e o aplicativo já toca imediatamente para ele pegar outra corrida. Quando ele tem que subir até o apartamento, ele perde uma ou duas entregas, que vão fazer falta na casa deles”, explica. Gringo lembra que há prédios em que a pessoa anda centenas de metros até chegar ao cliente.

Exército de reserva

O presidente da AMABR contextualiza que a mudança de comportamento dos entregadores, que antes faziam a entrega na porta do domicílio, sofreu alterações mais profundas durante a pandemia, quando muita gente foi forçada a trabalhar de forma autônoma para garantir o sustento de suas famílias. Além de mais gente fazendo delivery, os aplicativos acirravam a concorrência por cliente baixando os valores da taxa de entrega.

“Eles baixaram o preço para ter mais clientes, mas, quem sentiu isso foi o entregador”, observa. “Devido à baixíssima remuneração, os entregadores estão tendo outro comportamento, que é o de não subir nos apartamentos, pois, corre o risco de ser multado, de ter a moto roubada e, além disso, ele não ganha para isso, não vale à pena.”

Gringo destaca, ainda, que algumas pessoas se acham muito superiores aos trabalhadores de delivery. “Eu não sei explicar esse comportamento, mas têm pessoas que se sentem superiores e, em qualquer situação que não for do jeito que elas gostariam, já partem para esse lado da humilhação e da agressão”, lamenta o presidente da associação.

Ele conta que já vivenciou situações em que teve que ser transportado em elevador que carregava lixo. “Aquele fedor insuportável”. Além disso, já levou um empurrão de uma cliente. “Isso impacta, você fica com aquilo na cabeça. A chance de você depois sofrer um acidente de moto porque estava com a cabeça naquilo é gigante”, relata.

Gringo complementa que o fato de ter muita gente buscando trabalho como entregador faz com que empresas e plataformas não deem a devida atenção às reclamações dos trabalhadores.

“O entregador fica muito submisso ao cliente, e o cliente se aproveita disso. O cliente sabe que é só ele falar ‘o entregador foi mal-educado’. O aplicativo não quer nem escutar o entregador, ele não quer perder o cliente, então bloqueia o entregador porque ele tem um exército de reserva para fazer as entregas”, diz Gringo.

A plataforma iFood faz campanhas e parcerias, inclusive com o Secovi (sindicato que reúne administradoras de imóveis), para conscientizar a população e diminuir as ocorrências de desentendimentos entre clientes e entregadores.

No carnaval, houve a campanha #BoraDescer, sobre a necessidade de o cliente ir até o entregador no ponto de contato (portaria ou portão da residência).

A plataforma, que tem 250 mil entregadores ativos, oferece, desde junho 2023, uma central de apoio jurídico e psicológico, que fornece assistência para entregadores vítimas de discriminação, agressão física, ameaça, assédio, abuso e/ou violência sexual. A central é uma parceria com o grupo Black Sisters in Law, formado por advogadas negras.

Apenas em 2024, a central recebeu 13.576 denúncias de ameaça e agressão física. Desde 2023, dos casos que resultaram em processos e atendimentos pela central de apoio, 26% se referem a casos de agressão física, 23% de ameaça e 22% de discriminação. De todos os casos atendidos, 16% estão relacionados a subir ou não nos apartamentos.

Legislação

Um levantamento do Instituto Fogo Cruzado, especializado na coleta de informações relacionadas à violência armada, aponta que ao menos 26 entregadores motoboys foram baleados em serviço na região metropolitana do Rio desde 2017. Desses, 21 morreram. Os dados não apontam se eram especificamente ligados a plataformas e incluem vítimas de operações policiais.

“Precisamos continuar falando dessa profissão que é tão desprezada, que coloca muita gente em risco e sustenta tantas famílias no Brasil”, observa Carlos Nhanga, coordenador regional do Instituto Fogo Cruzado no Rio de Janeiro.

Esses trabalhadores precisam de medidas que assegurem os direitos ao emprego e à vida também. É preciso criar políticas que garantam o vínculo empregatício mais seguro, além de punir agentes de segurança que usem da violência para impor as suas vontades. É inadmissível que um policial militar armado ameace cidadãos dessa forma e fique por isso mesmo”, critica o coordenador.

Nhanga lembra que o país discute formas de regulamentação do trabalho por meio de plataformas. Na segunda-feira (4), o governo enviou ao Congresso um projeto de lei que regula a atividade de motorista de aplicativos.

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