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Cabelo é símbolo de identidade e resistência do povo negro através da história

Dos dreadlocks ao Black Power, o que antes era apenas o modo de ser, se tornou uma conexão com a ancestralidade africana e símbolo de luta contra padrões estéticos ocidentais

Victor Furtado
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O cabelo Black Power está além de um penteado. É um dos símbolos mais conhecidos no planeta para a representação do orgulho, resistência, identidade e luta por liberdade de pessoas negras. Mas este não é o único símbolo das raízes ancestrais africanas. O cabelo sempre foi uma parte do corpo que, para povos africanos, desde tempos pré-bíblicos, era uma representação de posição social, cultura, espiritualidade e até forma de comunicação e expressão de personalidade.

Black Power quer dizer, em português, "Poder Negro (ou Preto)". Quando se tornou o símbolo que é hoje, na década de 1960, com foco nos Estados Unidos, veio com uma campanha que ressaltava que a beleza negra, descendente dos povos africanos sequestrados e escravizados, era única, característica e diferente. Foi incentivado pelo comunicador, escritor, empresário e ativista político Marcus Garvey, que queria resistir aos padrões de beleza impostos pelo ocidente. Essa é a parte leve da história.

O Black Power era um dos muitos símbolos da rebeldia, resistência e força de um grupo militante em prol da igualdade de pessoas negras nos EUA: os Panteras Negras. Se tornou um partido político e pegou em armas para enfrentar a violência policial estadunidense. É deles que nasceu o símbolo do punho fechado e erguido, retratado na música "Pesadão" de Iza e Marcelo Falcão. Muitos conflitos, mortes e prisões seguiram até a década de 1980, quando partido foi desfeito após intensa interferência do FBI.

É tudo isso que o cabelo carrega para pessoas como o professor João Luiz, participante do BBB 21. Nesta semana, ele foi centro de uma nova discussão sobre racismo. O cantor sertanejo Rodolffo, já eliminado do programa, comparou o cabelo de João, um volumoso Black Power, ao cabelo de homens das cavernas. Como exemplo usou uma peruca feia, despenteada e com aspecto de sujo e malcuidado. Ele foi profundamente magoado, pois isso refletiu nele séculos de racismo sofridos por negros em todo o planeta.

 

"O que rolou no BBB é o retrato diário do Brasil", comenta professor

 

Esse contexto todo, entre outras ancestralidades, é explicado pelo professor mestre, sociólogo e escritor Domingos Conceição. Ele é um dos fundadores do Movimento Afrodescendente do Pará (Mocambo) e do "Coisas de Preto: Instituto de Beleza Negra". Ele é autor do artigo "Cabelo suspeito", que retrata como a polícia usa feições e características do povo preto como padrão de suspeição. Algo com o qual ele sofre até hoje, independente de toda a bagagem e história.

"Meu cabelo já foi Black Power. Faz alguns anos que está todo em dreadlocks. E digo que é absurdo que em plenos século 21 ainda precisemos discutir coisas tão atrasadas como o racismo. Não é só o negro que precisa se especializar para falar sobre isso. Outras pessoas também deveriam saber. Infelizmente, o que rolou no BBB é um retrato diário do Brasil, um país racista e extremamente conservador, mesmo tendo a maioria da população sendo preta", diz Domingos.

Cabelo, para Domingos e muitas pessoas negras que se conectam ou reconectaram com a ancestralidade africana, é um assunto muito delicado e sensível. Ele ressalta que o cabelo de povos negros é mais volumoso para servir de proteção contra o clima árido e sol forte das regiões onde a maioria dos povos negros nasceu. O continente africano, de onde por séculos de escravidão pessoas negras foram sequestradas, se tornou uma mãe que carrega o DNA negro. A "mama África", do cantor Chico César, resgata esse significado.

Os dreadlocks que Domingos usa atualmente são outro tipo de cabelo que remete à ancestralidade africana. E que também são vistos com preconceito por serem contrários ao padrão de beleza do ocidente. As tranças volumosas e presas em formato tubular, por vezes adornadas com outros adereços, ficaram famosas com o cantor Bob Marley, um dos mais conhecidos representantes da religião Rastafári (ou Ras Tafari). Nessa religião, o crescimento de forma natural, sem pentear ou cortar, é algo ligado à espiritualidade. Mas muito antes do movimento religioso, vários povos usavam dreads e o cabelo era uma forma de comunicação e status.

"O negro tem uma história de luta, de rebeldia. Tudo o que conseguimos até hoje foi na base da briga e da luta. O cabelo foi um símbolo que transitou por toda essa história. E, na minha visão, graças às cotas, que levaram muitos jovens negros à universidade, expandindo a liberdade, a cultura, o entendimento e mudando o visual do ensino superior, tivemos o boom de pessoas se aceitando e se voltando às suas raízes com símbolos como o cabelo", conclui Domingos.

 

"Aprendemos a negar nossa cor desde a escola", diz pesquisadora do Cedenpa

 

Eneida d'Albuquerque, pedagoga e pesquisadora do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), reforça que o cabelo — associado a vestimentas e outros adereços —, para povos africanos ancestrais, era tão expressivo e comunicativo que era possível até identificar se uma pessoa estava solteira ou comprometida apenas pela forma de armar o cabelo. As personalidades poderiam ser parcialmente decifradas pelo cabelo. Mas toda essa naturalidade e expressividade foram arrancadas na escravidão. Uma das primeiras coisas que se fazia nos navios negreiros era cortar cabelos e eliminar elos, identidade e humanidade.

"Aprendemos a vida toda, sobretudo na escola, onde, infelizmente, é um ambiente de racismo, a negar nossa cor, nossa raça, nossa ancestralidade, nossas religiões, nossa identidade. O cabelo não é só um penteado. É um símbolo de resistência, mas sempre mal interpretado, visto como feio, sujo, mal cuidado e não é isso. Na escola onde sou vice-diretora, eu tento mudar isso. Porque eu vivi em escolas onde eu sentava no fundão para ninguém ficar fazendo piada, ofendendo, jogando bolinha de papel. Na escola se manda prender os cabelos afro, como se fosse apenas o preto que pudesse passar piolho. Nosso cabelo solto representa liberdade", explica Eneida.

A educadora disse que já viveu tentando ocultar a negritude com o cabelo alisado. Não diferente da modelo e influencer Camilla de Lucas, também negra e participante do BBB 21, que disse finalmente estar passando pelo processo de transição para ter o cabelo afro original. Atualmente, a jogadora usa uma peruca enquanto o processo é concluído para remover a química. Constantemente, a moça é atacada "por não se aceitar" e é até taxada de hipócrita. É cruel. Eneida hoje usa o cabelo em trança de raiz. Mas quando solta, libera um Black Power grisalho que carrega uma história de resistência. Como todo negro carrega um pouco dessa história.

"O movimento Black Power e outros tipos de cabelos e expressões são formas de liberdade e de se assumir como negro. As pessoas acham feio e fazem comentários maldosos que matam nossa liberdade, nossa cultura, nossa história e nossas vivências aos poucos dentro de nós. Então é cabelo é liberdade. É símbolo. E isso também representa que a pessoa, se quiser alisar o cabelo, para se sentir bonita, pode. Não há problema. As pessoas são livres para serem o que quiserem e ninguém tem nada a ver com isso. Só é importante lembrar: ninguém será menos preto mudando essas características da nossa raça. Só parece que hoje em dia as coisas estão mais fáceis para a população negra. Só parece", encerra Eneida.

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Belém
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