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Natal, uma mulher com a força da natureza

Lorena Filgueiras
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Foram quatro meses para conciliar as agendas com Natal Silva. No primeiro contato, ainda por telefone, ela externou o quanto havia ficado apaixonada pela entrevista que o amigo do peito, Eloy Iglesias, havia nos concedido semanas antes. E mesmo com muita vontade, a agenda dela não batia. “Sou bicho do mato, mana. Eu vou a Belém num pulo e já quero voltar pro meu interior”, me disse. Enfim, de tanto persistir, deu certo. Marcamos no Parque da Residência, às 9h da manhã e Natal chegou às 7:30, como habitualmente faz, mesmo em seus próprios espetáculos, ocasiões em que costuma chegar com até seis horas de antecedência. Tirou os sapatos (e à medida em que conversávamos, entendi: ela é do chão, com pés bem fincados ao solo), foi rever os amigos e andou descalça o tempo todo. Conversou com as plantas, embrenhou-se nas raízes gigantescas de uma árvore centenária e, irrequieta, aguardou até que chegássemos.

A mulher que conheci, dona de uma voz de veludo e expressões marcantes, é de uma elegância enorme, como poucas vezes vi, é bem diferente de seus personagens. Aos 72 anos, Natal é uma força da natureza, por tudo que viveu e pela verdade que emana. Tudo é intenso, muito transparente e verdadeiro. “Uma vez comprei um terreno enorme porque queria construir uma casa, mas faltou dinheiro e invadiram o terreno. Deixei pra lá. Eu lá ia tomar a terra de quem realmente precisa dela?! Eu não, jamais!”. Essa foi apenas uma das surpresas da entrevista. Ao longo de quase uma hora, contemplei um pouco da força de Natal e a vi menina, moça, filha apaixonada, devotada ao pai, de quem sente saudades todos os dias e a quem se refere sempre no presente – justificável e perfeitamente compreensível. Afinal, o amor não conhece tempos verbais defasados. 

Troppo + Mulher: O “Natal” do teu nome, deduzo, deve ser porque nasceste no dia 25 de dezembro, não...?
Natal Silva: Isso! Eu nasci no dia do Natal, embora na minha certidão, esteja dia 26. Meu pai viajava muito...

T+M: Ele era caixeiro?
NS: Não, era carpinteiro e ele foi mestre de obras da Belém-Brasília [a BR010, com 1.956,6 km de extensão].... Ele é tão chique que tem o nome em uma placa, lá na capital, “Mestre Tavares”. Então, na época da [construção da] Belém-Brasília, as estradas tinham umas placas, avisando que ali era perigoso porque havia um precipício. Em um desses acidentes, meu pai estava no jipe, com uma mala. Nesta bendita mala, estavam todos os nossos documentos... Ele estava levando essa documentação para Brasília para dar entrada nos benefícios de plano de saúde para os filhos. Resultado: queimou tudo! Todos os nossos documentos! Quando a minha mãe morreu, éramos todos pequeninos. A menor estava com 5 meses e o maior, com 10 anos – uma escadinha.

T+M: Qual o teu lugar, nessa escadinha? 
NS: Eu sou a mais velha, dentre as mulheres.

T+M: Desculpe interromper teu raciocínio... mas e aí? Como foi isso: um acidente, a perda precoce da tua mãe...?
NS: Aí, a minha tia teve que tirar todos os nossos documentos... mas ela não sabia de nada! Como eu nasci no dia de Natal, meu nome ia ser Natal mesmo: Natal Silva Moura. Silva, da minha mãe; Moura, do meu pai. A minha tia, irmã da minha mãe, que não tinha filhos e se meteu nessa história toda, pensou: “Natal é na quadra Natalina”. Deixa eu voltar um bocadinho: meu pai, ao tentar me registrar como Natal, não conseguiu. Porque, segundo os cartórios, “Natal” não era nome de gente – e todas as meninas são Marias... e findou ficando Maria Natalina! (ela gargalha) Se alguém me chamar assim, eu nem olho. Tanto que nem mostro meu RG quando entro nos lugares, porque todos sabem: sou a Natal Silva!

T+M: O que mais me impressionou foi teu pai ter sobrevivido após cair no precipício...
NS: Pois então: ele morreu com 86 anos. Faz 19 anos que ele se foi... Ele era a coisa a mais linda do mundo... o grande amor e a maior dor da minha vida, até hoje!

T+M: Qual era o nome dele?
NS: Olha.... bora falar bem rápido dele? Porque, como eu te disse, é a maior dor da minha vida. Certa vez, dando entrevista para a TV Liberal, eu desatei a chorar e o elenco inteiro [da peça Verde-Ver-O-Peso] parou... até então, ninguém jamais havia me visto chorar. Foi uma comoção louca. O Pedrinho Cavallero ligou para o Nilson [diretor da peça]: “ei, Nilson, a Natal está chorando! O que houve???”. A Regina Alves [jornalista] respondeu para alguém: “falaram do seu João”.

T+M: É o único assunto que te tira o riso?
NS: É! E preciso te contar uma coisa: eu jamais falo nele no [tempo] passado. Sempre é “papai diz; papai faz”. Minha irmã me corrige: “mana, o papai dizia”. Nós éramos tão unidos, meu pai e eu, que onde quer que eu estivesse... Se estivesse viajando e o papai tivesse febre, eu tinha febre também.

T+M: Uma relação pra lá de umbilical...
NS: Era uma relação ancestral, cara! Era uma coisa... nem sei te explicar. Eu curto muito esses assuntos místicos. Compreendo A força. O chão tem muita força pra mim. Adoro fazer espetáculo no chão, descalça.

T+M: Tu és muito ligada, então, a essas forças...
NS: Olha, eu acho que eles é que são ligados a mim.

TM: Te importas em contar um pouco mais da tua mãe?
NS: Eu nasci em Cametá. Meus irmãos, mais chiques que eu, nasceram em Belém. Ainda verdinha, alguém da minha mãe [um parente] ficou doente e ela veio comigo pra cá. Peguei vento na moleira... o que explica muito do que sou hoje: uma louca! (ela ri) O Walter Bandeira [cantor, já falecido] dizia: “a Natal é um veado que deu certo! O vento bateu na moleira dela e ela virou isso tudo!”. 

T+M: E como foi teu início de carreira, Natal?
NS: Todos pensam que quem trabalha com Teatro é extrovertido. Eu sou o contrário. 

T+M: Tímida, Natal? Estou surpresa.
NS: Nossa, não fazes ideia! Meu diretor costuma dizer que eu sou aquela fortaleza... até que começam a me elogiar... aí eu vou baixando a cabeça... tua fotógrafa [da Troppo, Naiara Jinknss], enquanto fazia minhas fotos, teve que pedir várias vezes para eu levantar a cabeça! Eu sou a mulher do chão!
 
T+M: Então és uma “fingidora. Finges tanto que deveras sentes o que finges”...
NS: É isso! E tenho poeta na minha família. Meu primo é o Antônio Moura.... dá licença. O Teatro me dá essa liberdade. O que me faz parecer extrovertida é porque eu sou muito alegre e honesta com as pessoas. Quando eu gosto, eu gosto. Quando não gosto... 8 ou 80. Ou é sim ou é não. Meu pai me ensinou que a coisa mais importante do mundo é o ser humano e você tem que ser honesto com ele para que ele seja honesto com você. Eu não me lembro de ter sofrido alguma vez uma traição de amigos. Meu pai sempre me estimulou a jamais guardar mágoas. “O que você tiver de dizer, diga! Você vai agradar muita gente, mas vai desagradar muitos também... porque muita gente não gosta de ouvir a verdade!”. Se eu não gosto de alguém, por exemplo, essa pessoa não entra no meu lar. Casa é a estrutura, lar é onde eu me sinto bem. Eu amo o meu lar! 

T+M: Mas me conta: como foi teu começo de vida artística?
NS: Eu fui professora de Ballet. Criei o Grupo Coreográfico do SESI. Esse grupo, depois que saí, ficou sob o comando do Maurício Quintairos. Então, mas criei o Grupo Coreográfico do SESI e o baby class de ballet. Tinha aulas para criancinhas e também para adolescentes, pré-adolescentes e até já senhoras casadas faziam parte. Naquela época, essa atividade era vista como recreação, então eu era professora de recreação. Fiz ballet clássico com o Augusto Rodrigues e um dia, saindo da aula, encontrei um amigo que era ator e, para aproveitar uma carona dele, tínhamos de parar antes no Theatro da Paz. Ele estava encenando um espetáculo lá. Comentei com ele que meu pai tinha construído o palco, tratado as madeiras do palco. Aliás, tu achas mesmo que eu não ia dar certo?!? Se foi ele quem fez???(ela dá uma sonora gargalhada). Comentei com o meu amigo que meu pai nunca tinha entrado no Theatro da Paz. Mas eu queria entrar. E fui. Aí fomos, melhor dizendo. Entramos pela porta de trás. E lá estava eu: magrinha, sapatilha meia ponta, cabelo preso, roupa de ballet. Ele estava esperando o diretor dele, que era o Fernando Neves, que hoje trabalha na Bahia. A peça em cartaz era baseada na obra da Maria Clara Machado, “A volta do Camaleão Alface”. Estávamos sentados e eu perguntei pro meu amigo: “que horas teu diretor chega?”. E o próprio Fernando respondeu: “acabou de chegar!”. Ele passou por mim e disse: “é você!”. E eu não fazia ideia do que ele estava falando. Naquele momento, ele me designava para fazer o papel da gata. A atriz que estava com o papel, teve um problema e não podia mais interpretá-la. Respondi a ele que não fazia Teatro. “Não fazia. Agora vai fazer”, ele decretou. Ele me puxou pro palco e fez a cena para que eu visse. Fui fazendo e quando vi já estava no elenco. Fui bandeirante – graças a Deus – e era muito comum ter espetáculos na minha paróquia, que eu escrevia, dirigia... ficava ali nos bastidores. Uma vez, tive que fazer um papel, mas minha condição era de que eu não aparecesse. Então fiquei atrás das cortinas, como narradora. Na plateia, tinha um radialista famoso que ouviu... o Costa Filho. Quando comecei a narrar, ele perguntou: “de quem é essa voz? Porque ela tem uma voz linda!”. Essa foi a minha primeira vez, antes do Theatro da Paz. O fato é que lá, sob o comando do Fernando, foi um sucesso. Depois, fizemos “Romão e Julinha” e, aproveitaram que eu já dançava ballet, e incluíram uma cena, um solo. Advinha onde?

T+M: No Theatro da Paz?
NS: Lá mesmo, menina!

T+M: Teu pai estava lá?
NS: Não, ele nunca viu um único espetáculo meu!

T+M: Mas ele te apoiou na carreira?
NS: Ele ama. Meu pai recortava todas as reportagens. Ele fazia meu jantar, para ter o que comer quando chegasse do trabalho. Ele se preocupava com a hora que eu ia dormir. Ele me acordava passando a mão nos meus pés. Ele era a coisa mais linda do mundo! E a única coisa que eu amo eternamente! Eu vivia pra ele. Na minha casa, era ele quem escolhia o que queria comer. Meu dinheiro era para proporcionar o conforto dele... e o que sobrasse era meu. E não era só eu, não. Eu e minhas irmãs vivíamos para ele. A verdade é que ele foi muito amado. Depois que minha mãe morreu, ele não casou mais; fomos criados por tias e avós. Eu tive outras mães, do coração. Tive um casal, que me criou também, a Gilda, Hermenegilda e o Otávio. Ambos já morreram, mas me criaram e me deram mais irmãs. Foram eles que me colocaram para estudar, que me deram tudo. Daí, fui fazer outro espetáculo, “O Juíz Tinteiro”, que apresentamos no SESI, quadra. Quem estava na plateia?

T+M: (risos) Quem?
NS: Cláudio Barradas! Que ficou irritado. Ele bradava: “o Emanuel é doido de colocar uma atriz dessa pra fazer uma peça numa quadra?!? Vai acabar com a voz da menina!!! Eu quero ela” (ela se diverte e ri muito). Ele me levou e me incluiu no grupo de Teatro Universitário. E me dava a maior corda: “filha, vá fazer Escola de Teatro [da UFPA]”. Quando eu decidi entrar na Escola, eu já estava, havia uns 5 anos, no grupo de Teatro. E com o Cláudio, eu posso te dizer, aprendi tudo, tudo, que eu sei de Teatro. Ele me ensinou a pisar no palco; me falou sobre energia, do dividir. Geraldo [Sales] diz que não dou trabalho pra ele. Aliás, quem me dirige, quando faço comerciais, também diz que não dou trabalho pra ninguém. Ao mesmo tempo em que o Cláudio me ensinou muito, ele me castigou também. Brigava comigo, dizia que não estava bom. E eu chorava. Um dia, flagrei o Claudio rasgando a seda para falar de mim e eu perguntei: “ué, mas você brigava tanto comigo, dizia que não estava bom”. E ele respondeu: “você estava ótima, mas eu sabia que podia me dar mais!”. Rodamos o Brasil inteiro com espetáculos. Era década de 80 e o Teatro estava em alta. Aliás, me bate uma tristeza ver que já tivemos tudo e hoje temos tão pouco. Eu e meu grupo estamos conseguindo nos manter. Mas é muito triste.

T+M: E como vês o momento atual da Cultura no Brasil?
NS: Se me perguntares o que me deixa triste, a resposta estará na ponta da língua: falar do meu pai e ver colegas meus, profissionais maravilhosos, desempregados. Isso me entristece profundamente. Já chorei muito por isso. O cara não tem dinheiro, muitas vezes, para pagar a luz da casinha dele. Aí dizem que artista enriquece com leis de incentivo à cultura... que nada! Por isso, estamos tombados na miséria. 

T+M: O Verde Ver-O-Peso é um case de sucesso. A que atribuis tanto êxito?
NS: 38 anos que estamos juntos. 38 anos agora, em julho. Eu atribuo o sucesso ao enredo, que fala da nossa gente. Dia desses, estava eu conversando com o Paulão, e comentei com ele que temos um elo enorme com o povo de Belém. É uma relação de proximidade, atemporal. Há famílias inteiras que vão ver o espetáculo. Pais que viram a peça ainda crianças e hoje estão levando seus filhos, seus netos. O Grupo Experiência não é uma família só entre os atores – é uma família com o público. Se o povo quiser nos ajudar, que vá ao Teatro! O Teatro é uma das expressões mais importantes da vida cultural! Não desfazendo dos outros, mas é que o Teatro te coloca cara a cara com a gente. Os agentes do poder público precisam ter consciência que quando lotamos o Theatro da Paz, temos um público que paga por isso, mesmo com a situação tão difícil do paraense. Ingresso custa 50 reais e ele nunca vai só – ele leva a família. E por que ele faz isso?

T+M: Porque ele tem uma relação afetiva com o tema, com vocês...
NS: É isso, cara! Quando levamos a peça para fora, as pessoas se emocionam de saudade. O que custa o poder público ajudar?!? É obrigação do Estado ajudar. Aí quando dizem: “o grupo experiência é tombado!”, eu respondo: “o elenco também. Porque pelo menos 30% dos atores estão desempregados fora dali”. 

T+M: Já te convidaram a assumir um cargo eletivo público, Natal?
NS: Eu sou funcionária pública, sabe? Mas um cargo de alto escalão eu não aceitaria não... Eu ia querer esculhambar tudo: dar para quem não tem, dividir melhor os orçamentos. Eu sou capricorniana.

T+M: És supersticiosa?
NS: Sou! Com algumas coisas. Eu tenho as minhas coisas. Me benzo para entrar em cena e como tenho 500 cenas, eu me benzo 500 vezes. Chego 5 horas antes de o espetáculo acontecer. Checo tudo. Quando minha mãe morreu, eu me entregava pra ela, antes de entrar em cena. Depois que meu pai se foi, eu me entrego para ele. Digo: “pai, me ajuda. Estás mais próximo de Deus e eu vou fazer esse espetáculo para um monte de gente que veio me ver e quero dar melhor”. E sempre dá certo! Eu tenho uma coisa com mata, com rio... peço licença sempre que tenho que entrar. Olha como eu me arrepio [ela mostra o braço]. Não entro em lugar algum sem pedir licença. Aliás, não permito que ninguém invada a minha intimidade sem pedir licença! Não entro em água, porque uma senhora de Cametá disse à minha mãe, quando eu tinha uns dois aninhos de idade, que nunca me deixasse me aproximar de poços, de rios, de igarapés... e eu não me aproximo. Respeito, mas não chego perto. Quando vou à praia, me benzo e fico na areia! Tenho nem roupa de banho! (risos)

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