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Violência obstétrica: é possível superar o trauma? Sim, com muito apoio

Suporte psicológico e conhecimento dos próprios direitos ajudam mulheres a ressignificar a experiência do parto

Tainá Cavalcante
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Não é fácil superar uma violência obstétrica, mas é possível. Esquecer? Essa já é um processo que, na análise da psicóloga e doula Cleyce Costa, não ocorre. 

"Superar o trauma pode ser. Pode-se cuidar e melhorar. Mas esquecer? Nunca. A violência obstétrica é algo que fere a mulher no sentido mais profundo, de sempre se lembrar daquele momento, que era para ser de muita felicidade, mas vai ficar como algo ruim. Então, superar ela pode, ela tem ferramentas para isso, mas esquecer é bem mais difícil" afirma a profissional, que é especialista em psicologia da Saúde e hospitalar e mestra em psicologia social com pesquisas sobre práticas de humanização no parto.

Recentemente, a Redação Integrada de O Liberal veiculou uma matéria sobre violência obstétrica no Pará. Muitas mulheres, infelizmente, se identificaram com o processo sofrido e descobriram que também foram vítimas do abuso que, só nos primeiros quatro meses de 2019, violentou 260 mulheres no país, segundo dados da Central de Atendimento à Mulher, do Governo Federal. Ou seja: 65 mulheres por mês; mais de duas por dia.

Estando diante de uma violência que assola tantas mulheres em todo o país, o que fazer, então, para superar esse trauma? Como impedir que mais situações como essa aconteçam?

Para a psicóloga Cleyce, a forma ideal de tentar superar a violência sofrida é por meio de tratamento com psicoterapia e ajuda de grupos de apoio. "Na psicoterapia, ela pode trabalhar melhor essas questões e, nos grupos de apoio, ela vai poder ver que outras mulheres também passaram por isso e identificar como elas fizeram para superar esse momento" diz, acrescentando que "muitas delas usam a própria situação para que tenham força para lutar por outras mulheres".

Foi isso o que fez com que, aos 20 anos, Rita de Cássia Monteiro conseguisse superar a violência sofrida em seu primeiro parto. Hoje doula e consultora de amamentação, a jovem, em sua primeira gravidez, há um ano e dez meses, foi vítima de violência obstétrica.

"Eu sempre me informei muito, lia muito sobre gestação, especialmente sobre parto e pós-parto. Mesmo antes de ser mãe, antes da minha gestação e parto, esse assunto me atraia muito. Quando engravidei, já tinha um punhado de conhecimento sobre o assunto" relata Rita. "Idealizei meu parto - e sempre tive convicção que queria um parto normal, idealizei o que considerava necessário e as práticas e intervenções que eu não desejava. Eu acreditava que estar bem informada seria o suficiente para evitar violência obstétrica, mas não é a realidade. Além de estar bem informada, ter apoio e respeito às nossas escolhas é muito importante. A assistência dos profissionais faz toda a diferença, porque o parto é um momento em que ficamos muito vulneráveis, não temos condições de questionar ou nos impor" completa.

Rita afirma, de forma contundente, que sempre teve "noção de o que era a violência obstétrica" e de que "sabia exatamente que estava sendo violentada", no momento em que ocorreu. "Mas não era o suficiente para evitar" lamenta, ao iniciar o relato sobre o que sofreu.

"Quando me mandaram deitar e eu disse que queria ficar de cócoras, ouvi da enfermeira que se eu não deitasse, meu bebê não nasceria. Eu avisei a médica duas vezes que não queria epsiotomia (corte\pique no períneo), mas ela ignorou e, sem me avisar, sem pedir autorização, fez a epsiotomia" lembra, acrescentando que passou por um processo de negação, de não aceitar que tinha sido vítima de violência obstétrica e que tinha passado por um procedimento que caracteriza como "desnecessário e prejudicial". "Não aceitar que mesmo pedindo, fui desrespeitada e meu corpo foi mutilado sem minha autorização e sem necessidade" reforça.

Segundo Rita, o pós-parto foi ainda mais doloroso. "A sutura da epsiotomia não cicatrizava, inflamou, eu não conseguia sentar direito e tive muitos problemas para amamentar. Tive de voltar ao hospital com 30 dias pós-parto para retirar os pontos, pois haviam infeccionado. Após a lenta recuperação e passados primeiros meses difíceis, decidi denunciar a violência pelo canal de atendimento a denúncias de violências contra a mulher (180) e no Conselho Regional de Medicina (CRM)".

Foi a partir da decisão de denunciar a violência sofrida que Rita conseguiu iniciar o processo de superação. "Toda pessoa que é violentada, seja qual for o tipo de violência, carrega marcas emocionais e psicológicas e, em alguns casos, físicas. Comigo não foi diferente. Era muito difícil lembrar do parto do meu primeiro filho com alegria plena, pois a sombra da violência existia" afirma. "Mais difícil ainda quando ouvias das mulheres próximas a mim, do meu ciclo familiar, dizendo que era normal, que era assim mesmo, que era necessário. E eu sabia que não, e sentia muito, por terem sido violentada durante seu parto, e sequer terem conhecimento disso" acrescenta, contando que "poder falar sobre o ocorrido e ter apoio para fazer a denúncia foi fundamental".

image Após o trauma, Rita se tornou doula e ajuda outras mulheres a não serem vítimas de violência obstétrica (Laryssa Lameira)

"Resolvi não guardar a minha dor para mim e apoiar outras mulheres a se informarem e buscarem respeito às suas escolhas. Hoje sou doula [mulheres que dão suporte físico e emocional a outras mulheres antes, durante e após o parto] e ativista pelos direitos das mulheres e pela humanização do parto e nascimento" pontua.

Seis meses depois de sua primeira experiência de gestação, Rita engravidou novamente. "Lutei, busquei apoio e consegui ter o meu parto com respeito e humanização" diz ela, aconselhando que mulheres que foram vítimas da violência busquem, também, apoio e acolhimento.

"Uma doula, uma psicóloga, um grupo de apoio como o Ishtar [grupo de Belém], ou mesmo o posto de saúde do bairro. Denuncie. Independente de quando aconteceu, denuncie. Só assim, lutando por nossos direitos, buscando nosso espaço, nossa voz, podemos mudar a realidade obstétrica a nossa volta, que violenta e põe em risco a vida das mulheres que nos cercam e dos bebês" conclui.

Segundo a psicóloga Cleyce, assim como ocorreu com Rita, muitas mulheres conseguem ressignificar a gestação com a vivência de outro parto. "Muitas percebem que pode ser diferente através desse novo nascimento, da chegada de um filho de forma mais respeitosa" afirma, ponderando que também existem as que ressiginificam "através do cuidado com outras mulheres, como aquelas que não podem mais ter filhos a partir de uma situação e podem vir a ressignificar por meio do cuidado para que outras mulheres não passem pela situação que ela passou". 

COMO RECONHECER A VIOLÊNCIA

Para Cleyce, a melhor forma de se saber que uma mulher pode ter sido vítima de violência obstétrica é através do "medo da gestação, de ver uma mulher grávida e se penalizar com ela e, principalmente, do medo de ter o bebê".

"Quando a gente vê uma mulher que já teve filho, mas ela tem muito medo daquele momento do parto, a gente já desconfia que esse primeiro parto não foi tão adequado e é preciso investigar melhor para saber o que exatamente aconteceu" orienta.

Sobre a possibilidade de evitar que a violência ocorra, a psicóloga afirma que muitas mulheres sequer identificam que foram vítimas da violência obstétrica. "Muitas de nós acreditam que aqueles procedimentos fazem parte do parto. Por isso, o mais importante de tudo é que a mulher conheça, que ela se informe durante a sua gestação e que não confie somente na equipe de saúde, que tenha as decisões sobre o corpo dela".

Apesar de conhecer todo o processo, Rita, infelizmente, ainda foi vítima da violência que aflige corpos de tantas outras mulheres. A superação, para ela, ocorreu por meio de afeto, autocuidado e cuidado com o outro, apoio e mais conhecimento. Para outras mulheres, outros meios podem ser encontrados. A psicoterapia e o apoio de outras mulheres, na opinião de ambas, ainda é o meio mais eficaz para superar a dor de um parto violento e a cultura do parto desumanizante.

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