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Historiador relembra outras doenças que atingiram o Pará. Quarentenas não são novidade.

Toda doença, independente do nível — surto, epidemia ou pandemia —, tem um ciclo, que vai do paciente zero até a cura ou controle por tratamento

Victor Furtado
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A pandemia de covid-19 — doença causada pelo coronavírus sars-cov-2 — não é a primeira epidemia ou pandemia a chegar ao Pará. O estado já passou por outras graves crises de saúde pública na história. Algumas foram em épocas em que ciência, tecnologia e comunicação, nem de longe, tinham o grau de desenvolvimento que têm hoje. Já foram necessárias quarentenas. Já faltou leitos para atender aos doentes e lugar para enterrar mortos. A história, ao menos, traz uma lição e um alívio: doenças têm ciclos e terminam. Mas tudo deve ser feito para que os ciclos sejam encurtados com prevenção.

Diego Pereira, historiador e professor coordenador do curso de História da Unama, relembra algumas das principais crises de saúde pública do Pará: varíola, febre amarela, cólera (duas vezes), gripe espanhola (que antes se escrevia Hespanhola, como observa) e sarampo (que foi a última vez em que ocorreu uma quarentena). Nenhuma delas foi fácil. No entanto, todas, eventualmente, foram contornadas e contam com vacinas e tratamentos que minimizaram os riscos ou erradicaram as doenças. O problema é quando movimentos anti-vacina aparecem ou pessoas teimam em suprimir a gravidade que uma doença pode ter se não prevenida.

Uma das primeiras crises, cita Diego, foi a varíola. Os primeiros casos foram registrados a partir do bispado de D. Frei Bartholomeu do Pilar, entre 1721 e 1733. Foram incontáveis mortes e nem havia Twiiter para os órgãos de saúde publicarem boletins com os números. No Pará, a doença esteve associada ao tráfico de escravizados, diz o historiador. Especialmente a partir da intensificação do comércio, com a criação da Companhia de Comércio do Grão-Pará. Os navios escravagistas tinham péssimas condições de higiene e faziam constantes viagens entre Brasil e o continente africano. Várias epidemias de varíola ocorreram até 1819.

Da segunda metade do século XIX ao início do século XX, a varíola passou a ser atribuída às correntes migratórias para a Amazônia, principalmente nordestina. Diego Pereira cita Arthur Vianna e ressalta que a epidemia de varíola manifestou-se várias vezes, com maior ou menor intensidade. De 1793 a 1819, o serviço médico no Pará era rudimentar. Até 1769, só havia uma botica para dar conta de uma doença transmitida pelo ar e por contato. A incubação era de 7 a 17 dias, com febre alta, dor generalizada e lesões na pele. E alta taxa de letalidade. 

"Houve a intenção de construção de um lazareto para combater a doença, na qual fariam quarentena as embarcações, especialmente as que tivessem escravos. Segundo Arthur Vianna, a profilaxia empregada em 1793 recomendou o fumo da pólvora como desinfetante, mandando o governo da época descarregar tiros de artilharia nos cantos das ruas. Os resultados, como se esperava, falharam por completo. Em 1819, além das longas quarentenas, que não tinham desinfecções rigorosas e perdiam parte do efeito, o governo mandou fazer em todos os cantos fumigações de gás oximuriático, de resultados nulos. O isolamento dos atacados e a desinfecção dos domicílios, medidas de resultados seguros, não foram feitos nessas épocas, tampouco em outras posteriores, também epidêmicas", observa Diego. As quarentenas não tinham tanto rigor naquela época também.
 

Febre amarela originou o cemitério da Soledade, em Belém

image Na pandemia de febre amarela, foi necessária a criação do cemitério da Soledade. À época, de forma muito improvisada e apressada. Já se pensa na construção de uma cemitério específico para covid-19 no Tapanã. (Igor Mota / Arquivo de O Liberal)

A febre amarela chegou a Belém em 24 de janeiro de 1850, aponta Diego Pereira. Os casos iniciais vieram na embarcação dinamarquesa "Pollux", que vinha de Pernambuco. Tomou proporções epidêmicas rapidamente e pode ter afetado até 75% da população da época, que eram 16 mil pessoas. De janeiro de 1850 a junho de 1906, um total de 5.007 mortos foram registrados. A doença ainda chegou a Soure, Vigia, Cintra (atual Maracanã) e São Caetano de Odivelas. Quem adoecia, era chamado de "amarelento".

O vírus causador da febre amarela é transmitido ao homem pela picada do mosquito infectado. Após um período de incubação de 3 a 6 dias, o paciente tem febre, dor de cabeça, dores musculares, vermelhidão nos olhos, rubor de face e bradicardia. A doença causa hemorragias no fígado, rins e estômago. A desidratação e a lesão renal podem levar à insuficiência renal. No coração, a doença pode causar miocardite com insuficiência cardíaca e arritmias. A doença é mais grave em pessoas idosas e crianças.  

Pela lei nº 163, de 22 de dezembro de 1849, destaca o historiador, a corporação municipal (prefeitura) teve de entregar as obras do cemitério da Soledade à Santa Casa de Misericórdia do Pará. "Entre a demora do poder municipal no cumprimento da ordem e a epidemia de febre amarela, os cadáveres das vítimas da febre amarela se amontoavam e apressaram o estabelecimento do cemitério público na área das 'vallas'. Dentro do terreno, uma pequena capela de madeira foi erguida, sob a invocação de Nossa Senhora da Soledade", comenta. E assim nasceu o cemitério.

Arthur Vianna, cita o historiador, recomendou que todos os mortos pela febre amarela fossem sepultados no cemitério da Soledade. "A obrigatoriedade gerou grande insatisfação entre as autoridades eclesiásticas e corporações religiosas. Durante os meses da epidemia, apenas dois cadáveres de “amarelentos” tiveram sepulturas nas igrejas, o que possibilita o entendimento de que os outros foram enterrados no cemitério, conforme determinação", completa. 

Foi proibido o sepultamento nas demais igrejas e por isso foi necessário que houvesse um cemitério específico. Novamente, esse tipo de revolta ocorre com a intenção da prefeitura de Belém em construir um cemitério para covid-19 no bairro do Tapanã.

 

Cólera teve três pandemias e forçou a necessidade de se falar em saneamento

image A falta de saneamento básico, historicamente, esteve ligada a doenças de larga escala, como foi a cólera e continua sendo com dengue, Zika, Chikungunya e outras. (Cláudio Pinheiro / Arquivo de O Liberal)

A primeira pandemia de cólera que chegou a Belém data de 1855, observa o historiador Diego Pereira, mas já era a segunda pandemia da doença no mundo. A cólera, até o início do século XIX, era endêmica da Ásia. Ao ser registrada a primeira pandemia de cólera (1817-1823), a Europa tomou conhecimento da doença graças à situação dos russos. A confirmação se deu com a chegada da segunda pandemia (1829-1851): na Rússia, de 1829 a 1832, onde a doença matou 290 mil pessoas, alastrando-se pela Polônia em razão da guerra entre os dois países. Logo a Europa estava tomada. Em 1832, registravam-se casos nos continentes americanos.

Cólera é uma doença bacteriana intestinal aguda em seres humanos. É de veiculação predominantemente hídrica, causada pela enterotoxina do Vibrio cholerae, existindo vários tipos de vibrião colérico, cada um responsável pelas diversas epidemias de cólera que aconteceram no mundo. As pessoas adoecem ao beber água contaminada pelas fezes de pessoas contaminadas.

Em 14 de maio de 1855, a embarcação portuguesa Deffensor atracou no porto de Belém. Trouxe colonos procedentes das cidade do Porto, região do Douro, em Portugal. Era uma área assolada pela doença. O epicentro em Belém foi no bairro da Campina.

A terceira pandemia de cólera foi em 1961. Começou na Indonésia e o fluxo migratório espalhou a enfermidade pela Ásia, alcançou a Europa Oriental, passando à Península Ibérica e avançando pelo norte da África. Desde a década de 1960, ressalta o professor, a difusão da cólera era extensa. A forma epidêmica não se havia manifestado na América Latina até janeiro de 1991, quando eclodiu no Peru.

"Daí, para a chegada ao Brasil, foi uma questão de meses, pois em abril, os primeiros casos foram registrados no Acre. Em Belém, a epidemia chegava em 14 de novembro de 1991, quando o primeiro paciente foi internado no Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB). Os doentes de 1991 e 1992 moravam em áreas periféricas sujeitas a alagamentos, localizadas na orla da cidade, banhada pelo rio Guamá, ou em área de baixada, abaixo do nível do mar. Se antes a Campina era o foco, no século XX, foram os moradores dos bairros de Jurunas, Condor, Guamá e Terra Firme que acorreram ao HUJBB", registra.

image Hospital Universitário João de Barros Barreto, desde a época das pandemias de cólera, já era uma referência no tratamento de doenças infecciosas. (Igor Mota / Arquivo de O Liberal)


"Hespanhola", a violenta gripe de 1918

Na tarde do dia 2 de outubro de 1918, ancorava em Belém o vapor Ceará, vindo do Rio de Janeiro, com escalas e trazendo 129 passageiros, dos quais 42 estavam com a gripe espanhola. Os jornais da época já anunciavam que a embarcação tinha pessoas doentes. As autoridades da época, destaca o historiador, sabiam bem do risco. A estratégia, no entanto, foi "abafar" e minimizar os riscos. Como chamar de uma das mais violentas pandemias do vírus influenza de gripezinha. Governos de outros estados, aponta o professor, fizeram o mesmo.

"Tendo a 'Hespanhola' vindo de fora, a expressão melhor neste contexto seria 'caso introduzido', correspondente àquele primeiro paciente a introduzir a doença em um determinado local. Com o movimento do porto e o desembarque de muitas pessoas, algumas destas declaradamente doentes, localizar este paciente seria um esforço inútil. Mas as primeiras pessoas a morrerem da doença receberam algum destaque da imprensa, o que certamente serviu para incutir o medo na população", comenta Diego.

A primeira vítima registrada foi Miguel Archanjo dos Santos, cabotelegrafista, transferido de Niterói (RJ) para Belém, como ordenança do coronel Raymundo Rodrigues Barbosa, lembra o professor, citando jornais da época. Estava a bordo do Bahia e apresentava-se bem-disposto. Entretanto, quando o navio partiu do Ceará, começou a apresentar sintomas. Já chegou muito mal à capital paraense. Morreu às 12:30h, do dia 9 de outubro. Apenas sete dias depois de desembarcar na cidade.

Tendo visto semelhanças com o passado, o historiador reforça: a história não é repetição de fatos, ainda que possa ter um caráter especulativo para comparação. Muito menos tem poder de prever o futuro. Contudo, lições podem sim ser aprendidas e Diego comenta sobre uma das principais: prevenção.

"Na maioria dos quadros de surtos epidêmicos ou de pandemias, como o caso da gripe espanhola, que afetaram o Grão-Pará e/ou a cidade de Belém, a questão da prevenção foi quase sempre negligenciada. Em verdade, na maioria dos casos, as doenças possuíam poucos elementos de diagnóstico conclusivo e seus sintomas eram combatidos, ao invés de prevenidos, ou seja, buscava-se atacar a doença quando a população apresentava sintomas e os indivíduos já estavam com o vírus ou a bactéria no organismo", destaca Diego.

"Nesse sentido, acredita-se que com o avanço de formas de se evitar o contato com o novo coronavírus, bem como os avanços da área médica, seja possível prevenir de maneira mais efetiva o quadro pandêmico, afinal, diferente dos contextos das doenças no passado, a informação está disponível nos mais diversos meios de comunicação e ninguém pode negligenciar ou fazer pouco caso dela, sob a consequência de ser infectado ou mesmo transmitir a doença", conclui o historiador.

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