Educação superior é revolução para povos tradicionais

Processo Seletivo Especial da UFPA para indígenas e quilombolas permite a transformação de realidades pessoais e coletivas

Victor Furtado

 

Com um processo seletivo especial, 471 quilombolas e 68 indígenas agora poderão cursar uma graduação na Universidade Federal do Pará (UFPA). O resultado saiu nesta quinta-feira (6). Teve festas nas aldeias e nos quilombos urbanos e rurais, não só do Pará. Para os calouros, a educação superior é uma oportunidade de promover transformações para os povos tradicionais brasileiros. E reduzir o abismo de desigualdade social promovido por séculos de racismo e negação de direitos essenciais.

Todas as vagas ofertadas no processo seletivo especial foram extras. Quatro vagas para cada curso de graduação ofertado pela UFPA, sendo duas para quilombolas e duas para indígenas. Vagas extras, que não reduziram a oferta de vagas no processo seletivo comum. A seleção se deu com uma prova de redação e entrevista. Era preciso comprovar o pertencimento a alguma comunidade. Os movimentos estudantis internos da universidade acompanharam todo o processo.

Essas análises são do geógrafo Aiala Colares, que aponta ser o único quilombola com título de doutor no Pará e cursando pós-doutorado. E o primeiro negro titular do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP). Historicamente, defende o autorreconhecimento dos descendentes de quilombos e a educação como forma de revolução para as vidas de quilombolas. Mas essa é uma luta que também diz respeito a indígenas.

"O processo seletivo especial da UFPA permitiu ingresso em todos os cursos. Pode parecer que são poucas vagas, duas para indígenas e duas para quilombolas — com remanejamento de vagas que sobrassem. Mas o impacto que essa entrada causa para cada pessoa e cada comunidade é muito grande. É o ingresso numa das mais importantes universidades do Brasil e a maior do Norte. A partir da universidade, esses calouros poderão desenvolver atividades nas suas comunidades de origem. Luta pelo direito à terra, recursos naturais, educação, entre tantas outras possibilidades", analisa o geógrafo.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que 54% dos brasileiros se autodeclara negro ou pardo. Uma maioria que é representada, politicamente, por uma minoria. Em uma nota técnica lançada em 2018, alusiva ao 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), o IBGE apontou que o Amapá tinha 83% da população autodeclarada negra ou parda. O maior índice do Brasil. O segundo ficava com o Pará, com 82%.  

Apesar das proporções, só nos últimos 15 anos é que a presença de negros, quilombolas e indígenas nas universidades aumentou. A constatação é do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que publicou um estudo no Boletim de Políticas Social (BPS), em setembro deste ano. Entre 2012 e 2015, aponta o estudo, o número de vagas reservadas a estudantes negros aumentou de 140.303 para 247.950. Do universo de instituições públicas de ensino superior, 31% não haviam aderido a qualquer modalidade de reserva de vagas. E foram obrigadas a implantar.

Aiala é descendente do quilombo Petimandeua, no município de Inhangapi. Foi o segundo a c comunidade a entrar para o ensino superior. Com os processos seletivos especiais, uniu-se à professora Elaine Trindade e buscou apoio institucional da Universidade do Estado do Pará (Uepa) para montar um projeto de extensão, chamado "Do quilombo à universidade - empoderamento e inserção do negro no ensino superior". O curso preparatório começou em 2016, no próprio quilombo. Agora já atende as comunidades Macapazinho, São Pedro e Itaboca também.

"Os povos tradicionais precisam ter acesso às universidades públicas. É direito. Esses espaços precisam ser ocupados para que mudanças possam ser promovidas nas comunidade. No projeto, além de incentivar a juventude e adultos a estudar, preparamos eles para debates como questões raciais, LGBTIfobia, autorreconhecimento, religiosidade, violência contra a mulher e outros temas que precisam ser discutidos por essas populações", concluiu Aiala, justificando o porquê da necessidade de representatividade de quilombolas e indígenas no ensino superior público.

Ketlen Tavares, de 21 anos, todos os dias redescobre a identidade quilombola. E fala com muita alegria que deu à mãe uma neta quilombola pura: a Ana Gabriela, de sete anos. Ela abraçou a religião da mãe e dos ancestrais. Aos 20 anos, deixou de alisar os cabelos e adotou as características do povo dela. Chama, com carinho, o quilombo Petimandeua de "Meu Quilombo", que visita com frequência. Ela é caloura de Publicidade e Propaganda, graças ao PSE.

 

Calouros indígenas querem devolver serviços às comunidades originárias

 

Scolny Catarini (Direito) e Wesley Jhonathas (Engenharia da Computação) são do povo Tucano, da Terra Indígena Médio Rio Negro, no Amazonas. Para eles, o ingresso no ensino superior é a chance de devolver conhecimento à comunidade de origem. Dizem ter orgulho de ter o sangue do povo original do Brasil. Acreditam que políticas de inclusão são a forma mais eficiente de enfrentar a desigualdade social e dar qualidade de vida aos povos tradicionais.

O plano de Scolny é ser defensor público para a terra indígena dele. Ele observa que, atualmente, defensores públicos demoram de seis meses a um ano para chegarem à aldeia onde mora. "Falta pessoal qualificado nessa e em outras áreas. Mas sempre gostei do Direito", comentou o futuro advogado. Wesley quer fazer cursos de capacitação tecnológica e melhorar a infraestrutura de comunicação. Formas de devolver conhecimento e serviço. "Sempre gostei de tecnologia e de estudar várias áreas. Então quero levar de volta o que aprendi e repassar", destacou.

Sobre cotas e processos especiais, acreditam que só quem pode achar preconceito é quem sofreu discriminação a vida toda. "É opção. Um direito. Quem quiser concorrer pela ampla concorrência, tudo bem. Mas e um fato que o branco tenta questionar e duvidar da capacidade de indígenas, quilombolas...", diz Scolny. "E eu acho que o momento de mostrar nosso valor, nossa capacidade, é na universidade. Não importa o meio de ingresso e sim nosso desempenho. E nós estamos empolgados, felizes, cheios de sonhos e prontos para estudar", completou Wesley.

Sistema de cotas precisa ser reforçado e transformado numa política mais ampla e inclusiva

Por conhecer essas desigualdades sociais que afligem os povos tradicionais brasileiros, é que a antropóloga e professora doutora emérita da UFPA Zélia Amador — uma das fundadores do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa) — afirma: o Brasil ainda não está pronto para encerrar o sistema de cotas. Essa é uma previsão pessimista do movimento negro brasileiro para 2022, prazo previsto para revisão do sistema.

"Não podemos ficar sem as cotas ainda. Por sinal, precisamos é de mais políticas públicas e uma justiça restauradora para a dignidade da população negra do país. Ainda falta muito. Mas o movimento negro vem resistindo há 500 anos", declara Zélia. Processos seletivos especiais, como da UFPA, com formas de ingresso diferenciadas, é uma novidade dentro das políticas inclusivas para a educação superior. Zélia destaca a necessidade de ampliação desse tipo de iniciativa para aumentar a representatividade. Ela é representante do movimento negro, que inclui, diretamente, quilombolas. Mas o mesmo se aplica a indígenas.

Por fim, Zélia diz que não é só a população negra que conta com as cotas raciais para acessar o ensino superior. Toda a sociedade brasileira depende disso, não somente quilombolas e indígenas. Só assim, as realidades começarão a ser transformadas e a nação será mais igualitária e completa, pontua.

"O próximo passo é termos mais médicos, advogados, engenheiros, servidores públicos e parlamentares. Termos negros representando em todos os setores da sociedade, para garantir as melhores políticas públicas e serviços á toda a população. As cotas são um mecanismo de igualdade em muitas áreas da vida", conclui a antropóloga.

 

 

 

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