Insegurança alimentar alcança 9,8 milhões de pessoas

Estudo mostra ainda que 35% da população vive com uma renda per capita (por pessoa), que vai de um quarto até meio salário mínimo

Elisa Vaz
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Embora a população que vive no Norte represente apenas 7,5% do total de habitantes do Brasil, 14,9% de todas as pessoas que passam fome estão na região. Dos 15,7 milhões de habitantes no local, apenas 5,8 mi estão em situação de segurança alimentar, enquanto 4,8 mi têm insegurança alimentar leve, 2,2 mi insegurança alimentar moderada, e 2,8 milhões têm insegurança alimentar grave. Os dados são da pesquisa "Vigisan: Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar em Contexto de Covid".

Nesta segunda-feira (7) é celebrado o Dia da Segurança dos Alimentos, mas em todo o país muitas pessoas não têm o que comer. O estudo aponta que mais da metade (55,2%) dos domicílios brasileiros têm moradores em situação de insegurança alimentar, que é a falta de disponibilidade e o acesso a alimentos. Além disso, 9% convivem com a fome.

No Norte, isso pode se justificar pelo fato de que 35% da população vive com uma renda per capita (por pessoa) que vai de um quarto até meio salário mínimo – entre R$ 275 e R$ 550. Outros 25,7% têm renda de até um quarto de salário mínimo, e 24,2% ganham mais de meio salário mínimo, ou seja, acima de R$ 550 por mês. Apenas 15% recebem mais de um salário completo, que vale R$ 1.100.

O economista Mário Tito Almeida, que é doutor em relações internacionais e escreveu a tese de doutorado sobre fome e soberania alimentar, afirma que a pandemia revelou um lado “macabro” da economia, em que a produção de alimentos é, prioritariamente, voltada para o acesso ao lucro. Desta forma, a alimentação, em vez de ser um direito garantido, se torna uma mercadoria.

Segundo ele, a fome - ou insegurança alimentar grave - no Brasil não é um problema causado pela ausência de produção, mas sim por uma questão política, no sentido em que são as decisões políticas no âmbito econômico que podem gerar ou não a insuficiência alimentar grave. “Esta é uma situação que deve ser observada do ponto de vista estrutural e não conjuntural. É óbvio que a pandemia reforçou ainda mais o aparecimento da fome no nosso país, elevando o número de atingidos a um patamar muito alto de quase 20 milhões de brasileiros. Mas, é importante entender que esta situação de insegurança alimentar e nutricional já vinha acontecendo, os dados já estavam se tornando graves, antes mesmo da pandemia”, comenta.

O motivo para este cenário é que o governo federal fez a escolha política de investir no agronegócio e diminuir o aporte financeiro para o estímulo da agricultura familiar. Mário afirma que, quando isso acontece, cria-se uma potencialização à exportação e diminuição da capacidade produtiva interna do país. “Sabe-se que a agricultura familiar é responsável pela maior produção de alimentos dentro das perspectivas do consumo interno. Então, nesse sentido, diminuir o investimento para esta área significa diminuir a disponibilidade de alimentos na mesa dos brasileiros. Já o agronegócio é voltado para a exportação, e muitas empresas são transnacionais, portanto, negociam seus alimentos no mercado internacional de commodities”.

Do ponto de vista conjuntural, o especialista ressalta que, ao deixar de atender às demandas de renda para incrementar o consumo das famílias, há um impacto claro no acesso à alimentação. Isso, para ele, é um reflexo da postura adotada pelo governo, um processo baseado no neoliberalismo: diminuição do Estado na atividade econômica, por meio da privatização; e redução dos gastos governamentais com a população.

Isso é negativo porque a conjuntura internacional exigia um papel forte do Estado como indutor da demanda agregada, o que foi reforçado pela pandemia, diz Mário. Seria preciso fazer um aporte financeiro mais consistente e sustentável para as famílias, em termos de transferência de renda, que permitisse que as pessoas ficassem em suas casas e tivessem acesso aos alimentos. Como isso não aconteceu no Brasil, o país foi na contramão do que era esperado e diminuiu sua ação como investidor direto na economia - ao mesmo tempo, os dados começaram a aparecer de maneira negativa.

Os impactos disso na pandemia devem ser analisados por meio de três índices, segundo o economista. “O primeiro é a alta taxa de desemprego, que já chega aos 14% no Brasil, isso se considerarmos apenas aqueles que efetivamente estão sem a carteira assinada, mas se colocarmos os que têm precarização nas relações de trabalho o número é maior. Aí entra a inflação, que cresce e prejudica os mais pobres, porque afeta os bens de primeira necessidade, em especial os alimentos. E o terceiro é a taxa de câmbio, resultado da quantidade de dólar no Brasil. Tem pouco, e isso gera desvalorização do real. Vimos o investimento direto diminuindo, com marcas deixando o país, e o indireto também, na Bolsa. A fuga desse capital está ligada à falta de confiança em relação ao que o governo está apresentando. Esse descontrole na taxa de câmbio traz problemas para o orçamento brasileiro e gera o problema da falta de emprego, que gera a falta de renda, que, por sua vez, gera a diminuição do consumo das famílias”, explica.

Em relação à região Norte, Mário declara que ainda existe um outro problema histórico no Brasil: a desigualdade regional. “A fome é invisível e invisibilizada. Invisível porque as pessoas acham que não vai faltar comida para ninguém na Amazônia por causa da biodiversidade, mas existe fome sim, os municípios mais pobres do Brasil estão na Amazônia. E invisibilizada porque não tem pesquisas sobre alimentação. Existe pobreza, miséria e fome na Amazônia porque há uma desigualdade de renda que mostra que o Brasil tem um fosso entre a elite do atraso e aqueles que labutam todo dia para ter um salário”.

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Família vive de auxílios

Entre tantas famílias que vivem na linha da pobreza está a de Leila do Socorro Santana, de 55 anos. Ela mora com o neto, João Victor, de 12 anos, no bairro do Jurunas, em Belém. A principal renda dos dois é do Benefício de Prestação Continuada (BPC), auxílio concedido pelo governo federal às pessoas com deficiência – o neto de Leila possui a Síndrome de Down. O valor é de um salário mínimo, de R$ 1.100. Além disso, eles estão recebendo o auxílio emergencial.

Com os dois benefícios somados, a avó consegue pagar os gastos fixos, como energia elétrica, alimentação e gás de cozinha, mas sem luxos. Eles não pagam aluguel porque a casa foi deixada pela mãe de Leila, e ela mora lá há mais de 40 anos. Mesmo assim, o dinheiro recebido pelos dois não dá para pagar tudo. A avó trabalha catando latinhas, mas conta que o lucro não é grande.

“Parei de vender porque ficou muito competitivo, se eu pegar o que tenho guardado ali vai dar R$ 3 ou R$ 4, não dá para nada. Quando vendo, compro algumas frutas, que o João gosta, mas vivemos de uma forma muito simples. Nem água temos, ainda não tive condições de instalar. Com o auxílio, investi em um banheiro, que também não tínhamos. Quando saio com o João fico triste porque ele pede coisas e lanches e eu não posso dar”, comenta.

Antes de cuidar do neto, Leila trabalhava como empregada doméstica, mas deixou o emprego porque os patrões não pagavam na data correta. Depois, em outro emprego na mesma área, ela precisou entrar na Justiça. Com o dinheiro da indenização recebida, Leila investiu em uma venda de tacacá. “Eu ganhava muito dinheiro, mas nessa época bebia muito, era alcoólatra, e não aproveitei bem”.

O pai de João Victor, filho de Leila, é presidiário, e a mãe o abandonou, por isso a criança vive com a avó. Depois, ela começou a trabalhar com a venda de churrasco, e levava o neto com ela. Mas, ao descobrir que João tem a Síndrome de Down, precisou parar de trabalhar para cuidar dele integralmente. Mesmo agora, que o neto já está maior, Leila diz que não tem condições de voltar a trabalhar formalmente.

“Não tenho medo de trabalho, mas tenho artrose, dificuldade para andar e sair, problema de coluna, trabalhei muito nessa vida, cuido do João desde que ele tinha 15 dias de nascido. Não pensei em nenhum momento que mudaria minha rotina. Mas não penso em voltar a trabalhar porque estou doente, e trabalhar para pagar alguém para ficar com ele vai dar no mesmo. Tenho vontade de ter uma vendinha se for necessário”, diz.

Boa parte dos alimentos que Leila e João consomem vem de doações de projetos sociais e pessoas que fazem esse trabalho. “Elas ajudam muito. Tem dia que trazem três frangos, leite, biscoito, almoço e jantar, se arriscam porque aqui é perigoso. Não é só a cesta que faz o efeito, é o amor, carinho, dedicação e abraço puro. Mas agora, se for abrir a geladeira, não tenho mais nada. Essa semana não recebi nada, último frango que tinha já fiz. Terça ou quarta não vai ter mais nada, só tenho R$ 95 para comprar um gás, que acho que já vai acabar. Tenho que fazer compra de uns R$ 100 ou R$ 200 reais, que é o limite que ainda tem no meu cartão de supermercado”.

Leila não pensa em voltar a estudar. Ela diz que “já passou esse tempo” para ela e que seu objetivo agora é dar uma boa condição para o neto. Na sexta série, até hoje João não sabe ler nem escrever. A avó atribui isso ao descaso nas escolas públicas e à falta de profissionais qualificados, que não sabem lidar com pessoas com deficiência. Segundo ela, João chegou a sofrer preconceito em várias escolas onde estudou, tanto por parte de alunos como de professores.

“Ele sempre é humilhado nas escolas, dizem que não estão ali para ensinar ele, o governo não dá apoio. Mesmo sem saber nada, todo ano ele passa de série, porque querem se livrar dele”, conta. Por conta disso, Leila começou a separar um dinheiro mensalmente para que ele possa fazer aulas de reforço, que custam R$ 100. Um sonho da avó é pagar uma fonoaudióloga para o neto, que tem dificuldade para falar. “Não quero ficar rica, só quero melhora, quero ver ele bem”.

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