Preta, transexual, indígena e evangélica: os corpos e as lutas das mulheres amazônidas

Um recorte dos diferentes desafios impostos a quem decidiu fazer da própria vida uma bandeira de luta

Tainá Cavalcante
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Não é fácil. Ser mulher, em um país que violenta fisicamente 500 mulheres por hora, é sinônimo de resistência. Não deveria ser assim, mas, infelizmente, o número ainda pode ser muito maior. Esses são os dados referentes ao ano de 2018, segundo um levantamento encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que entrevistou mulheres de todas as regiões do Brasil. A escalada da violência, porém, é crescente. Em 2013, segundo o Mapa da Violência 2015, treze mulheres morreram diariamente vítimas de feminicídio, isto é, assassinato em função de seu gênero. O número representa um aumento de 21% em relação à década passada. São milhares de mulheres, assim como Marielle Franco, Patrícia Acioli, Dorothy Stang e tantas outras, vítimas de um sistema hostil e patriarcal. 

Mesmo com dados que demonstram, em números, a ameaça latente e diária aos seus corpos e vidas, a mulher brasileira resiste. Resiste por meio da luta coletiva, porque quando elas se unem, o grito é mais forte. Resiste por meio do afeto, porque não há nada mais revolucionário do que o amor. Resiste por meio do empoderamento, da liderança, do feminismo, do suor, do clamor e da garra. Resiste por meio da sororidade, que as entrelaça, as abraça e as faz companheiras.

Ser mulher amazônida torna o processo de resistência ainda mais necessário e urgente. Assim relatam a psicóloga e ativista negra, Flávia Câmara; a pedagoga Beatriz Almeida, mulher transexual; a estudante de Direito, evangélica e feminista Larissa Martins e a jornalista Nice Gonçalves (krowaty), indígena da etnia Kamuta (biológica) e Kayapó (povo que a adotou). Emergentes de diferentes recortes sociais, todas fazem, de suas vidas, a propagação de suas lutas. 

Flávia Câmara, 32 anos - Psicóloga e ativista negra

Ativista negra, a psicóloga Flávia Câmara, 32, garante: "ser mulher negra amazônida é desafiar todos os dias a invisibilização de nossos corpos, nossas vozes, memórias, identidades que são negras e não morenas ou outras denominações embranquecedoras, culturas e histórias". Se autoafirmando hoje como mulher negra amazônida e feminista negra, ela chama atenção para uma importante questão das mulheres negras: a disputa de espaços com todos os grupos e narrativas, "porque ser mulher negra amazônida tem o agravante de ora ser universalizada nas experiências de mulheres, ora sermos universalizadas nas experiências de (homens) negros". 

 

image "Mulheres negras são atingidas de formas diferenciadas, pois nem todas as pautas e discursos feministas vão falar de nós", defende Flávia Camara (Cláudio Pinheiro / O Liberal)

"Quando se pega, por exemplo, o Mapa da Violência contra a mulher de 2015 em que houve um aumento de quase 54% do feminicídio de negras, vemos que estamos à margem quando se trata das lutas feministas (brancas) e raciais (masculinas). Todos os dias temos que nos forjar sujeitas políticas de nossas próprias vidas" afirma, ao destacar que mulheres negras "são atingidas de formas diferenciadas, pois nem todas as pautas e discursos feministas vão falar de nós". 

Para ela, apontar essas diferenças é o primeiro passo para a resistência. "Não dá mais para esperar a próxima Marielle. Denunciar que são as mães pretas que velam seus filhos a cada corpo negro que tomba com o genocídio negro é fundamental. Somos minorias em espaços de decisão e poder, mas somos maioria em espaços de criminalizações e ausências de políticas pública" lamenta, argumentando que "somos capazes de ocupar e estar nos mais variados espaços de poder e saber, o que nos separa são as conduções materiais e concretas que nos foi historicamente negadas".

Por fim, Flávia ressalta que "é até difícil enumerar os lugares que ocupamos na luta das mulheres negras, pois somos muitas e estamos cotidianamente nos refazendo e nos aquilombando e, infelizmente, em nossa vida não é permitido desistir, porque a cada ida em um supermercado podemos ser as próximas vítimas de um país que mata negras e negros fingindo que racismo não existe".

Beatriz Almeida, 45 anos - Pedagoga e mulher transexual

Desde a infância reconhecendo-se como mulher, a pedagoga Beatriz Almeida, 45, sentia-se presa a um corpo dito masculino. Sua mente jamais correspondeu ao que via no espelho: órgãos que não condiziam com a sua essência, feminina desde o início de seu processo de reconhecimento pessoal e social. Sua primeira fonte de identificação e contato com a transexualidade foi a apresentadora transexual suíço-brasileira Roberta Close. Era nela que, na época, ainda sem nem conhecer o termo transexualidade e a possibilidade de ser uma pessoa transexual, Beatriz se inspirava.

image Beatriz Almeida se orgulha de ser uma mulher transexual redesignada, ativista e empoderada. (Cláudio Pinheiro / O Liberal)

 

Foi o passar do tempo que fez a pedagoga se reencontrar em si. Alguns anos separaram a Beatriz da infância, que aos oito anos queria ser como Roberta Close, da Beatriz de hoje - mulher transexual redesignada, ativista e empoderada.

"Eu comecei o processo de transição na minha adolescência, a base de hormônios. Na fase adulta, senti a necessidade de fazer a cirurgia de readequação. Foi quando eu vi, na televisão, um médico falar sobre o assunto. Procurei por ele, que se interessou no caso, porque eu era a primeira mulher do norte e nordeste a procurá-lo e a fazer o processo de transição. Isso foi em 1999 e, a partir de então, eu consegui seguir a minha vida como uma mulher redesignada" conta.

A adequação à luta feminina, segundo Beatriz, veio depois. A integração e plena aceitação da mulher transexual a grupos feministas ainda é tema de debates e opiniões divergentes no movimento, mas a pedagoga relata experiências positivas após anos de dedicação à causa. "Ainda há exclusão, mas eu lutei e consegui o meu espaço. Nossa luta ainda tem muito o que avançar, o preconceito precisa acabar, mas eu acho que já demos longos passos neste mundo. Agora, nós já conseguimos andar de mãos dadas uma com as outras" defende, ao ressaltar que é "uma mulher afro religiosa, militante feminista e LBGT+" e que, "para a mulher transexual tudo é mais difícil, considerando que estamos no país que mais mata travestis e transexuais, mas estamos aqui para resistir e conquistar espaços".

Larissa Martins, 19 anos - Estudante de direito, evangélica, integrante do grupo de Debate e Pesquisa em Estudos Feministas e pesquisadora sobre liderança feminina nas igrejas evangélicas 

Evangélica desde que nasceu, a universitária Larissa Martins, 19, sempre baseou sua vida nos princípios cristãos. Criada pelos pais, ambos atuantes em igrejas evangélicas, ela se construiu socialmente dentro da igreja. Foi esse espaço, considerado tão tradicional, que a fez reinventar-se, também, na luta feminista. Sua presença e voz tornaram-se revolucionárias naquele ambiente, que hoje integra a luta de Larissa, ao dar espaço aos seus pronunciamentos.

image A mãe de Larissa, Simone Silva, foi quem ensinou todos os princípios que hoje permeiam suas lutas. (Cláudio Pinheiro / O Liberal)

 

A estudante lembra que esse processo, porém, iniciou bem mais cedo. Ainda dentro de casa, e sem nem saber o que era feminismo, a mãe de Larissa, Simone Silva, a ensinou todos os princípios que hoje permeiam suas lutas.

"Ser mulher cristã e feminista não é muito difícil quando você foi criada por uma mãe que, mesmo sem saber o que era feminismo, sempre trouxe empoderamento feminino para dentro de casa" declara. Sobre ser feminista dentro da igreja evangélica, Larissa diz que "lutar pelos direitos das mulheres e lutar por um mundo mais igualitário não é nada diferente do que Jesus fez". "Ele empoderou mulheres em uma época em que elas eram apedrejadas por adultério. Ele conversou com mulheres, as ensinou. Então, ele trouxe esse ar de igualdade e lutou pelos nossos direitos mesmo em uma época em que éramos consideradas objetos" completa a pesquisadora, que faz questão de entoar seus posicionamentos dentro do espaço cristão.

"Ensinar nos espaços das igrejas, empoderar mulheres e pregar sobre o valor feminino, além de ser muito importante e necessário, é algo que já tem acontecido quando a gente vê que igrejas evangélicas já "permitem" que mulheres sejam pastoras, que mulheres ensinem e liderem dentro das igrejas. Inclusive, tenho uma pastora na minha igreja e muito da força e do empoderamento feminino que eu tenho, veio dela. Então, resistir e ocupar esse espaço é muito necessário" diz.

Nice Gonçalves (Krowaty), 29 anos - Comunicadora social e indígena das etnias Kamuta (etnia de sangue) e Kayapó (povo que a adotou)

À margem do rio Tocantins, próximo ao município de Cametá, foi onde Nice Gonçalves, 29, nasceu. Com pai de família indígena e mãe de descendência indígena misturada ao sangue europeu, a jornalista decidiu, mesmo diante da dificuldade de seus familiares em falar sobre a origem indígena, se tornar ativista de seu povo. Por meio de um programa voltado aos povos originários, Nice fala sobre resistência, combate estereótipos e dá voz e visibilidade à causa indígena.

image Nice Gonçalves (Krowaty) resolveu transformar sua cultura em seu foco de luta  (Cláudio Pinheiro /O Liberal)

 

"Não é fácil ser mulher na sociedade machista e patriarcal que vivemos, imagina ser mulher indígena e da Amazônia e na condição de mãe solo também. Travo lutas diárias para provar que tenho potencial, que não sou incapaz ou até mesmo burra, como infelizmente pensam de quem vem do mato, como eu que vim da beira do rio" relata. "Luto diariamente para estar nos espaços, para me impor diante de todos, inclusive dos homens que sempre querem tomar nosso lugar ou dizer o que temos que fazer" acrescenta.

De acordo com ela, o receio da família em falar no assunto indígena é decorrente de "muitos traumas e dores que carregam por conta da perseguição aos indígenas que nessa área do Baixo Tocantins foi muito grande". Na contramão dessa decisão, Nice resolveu não só falar do assunto, como também dar a maior expansão possível a ele, aliando-o, ainda, a sua luta como mulher. 
"Meu feminismo é classista, penso que só é possível a libertação de todas as mulheres se derrotarmos o sistema capitalista que nos oprime e nos explora, que estruturaliza o patriarcado fortalecendo o machismo que nos atinge diariamente".

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