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Morar: um direito fundamental do homem, à prova na Marambaia

Há um mês, 70 famílias ergueram sonhos em terreno abandonado: veja histórias da comunidade 'Sagradas Escrituras'

Dilson Pimentel
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"Quero colocar meu filho debaixo de uma casa boa pra gente não passar mais vergonha", desabafa Erika Tainá, 18, cujo filho tem apenas seis meses de idade. Ela, a mãe, o irmão e a prima moram no terreno que fica atrás da Seccional da Marambaia - ocupado, há quase um mês, para dar opção de moradia a 70 famílias. São pessoas que dizem que, antes, pagavam aluguel ou viviam com parentes. Todas há muito sonham com a casa própria.

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Enquanto chovia e seu filho dormia, na manhã desta sexta-feira (1º), Tainá, como seus familiares e amigos a chamam, contou como era a vida deles antes de ocuparem essa área. "A gente morava em uma quitinete, ali para a avenida Dalva [na Marambaia]. Mas a mamãe está desempregada e não tinha condições. Era a maior luta para pagar aluguel. A gente passava vergonha. O proprietário colocava a gente e nossas coisas para a rua. E eu com a criança. Ele não entendia...", conta.

image Marcilene Souza, prima de Tainá: família de cinco à busca de um lar  (Igor Mota)

O aluguel custava R$ 350. "A mamãe faz bicos. Ela se vira, limpa a casa dos outros, faz faxina. A gente ficou sabendo [desse terreno] e a mamãe meteu a cara aqui. É um alívio não pagar aluguel. E não passar mais vergonha em ser colocado pra fora de casa", justifica. 

UM CELULAR POR UM LAR

Segundo as famílias, o terreno ocupado, uma área pertencente ao próprio governo do Estado, estava abandonado há 35 anos. Nesse tempo todo, virou abrigo para outras coisas: servia de esconderijo a ladrões e para a prática de delitos. As mães, pais e moradores que para lá se mudaram rebatizaram o lugar. Agora se chama de "Sagradas Escrituras".

image Viviane Magalhães: área foi rebatizada de comunidade "Sagradas Escrituras" (Igor Mota)

Aproximadamente 60 casas de madeira já foram erguidas. Uma delas é de Daniel Victor Gomes, 27 anos, que lá mora hoje com a esposa e a filha, de oito meses. Antes a pequena família pagava aluguel, no mesmo bairro da Marambaia - o que fizeram por quatro anos.

"A gente pagava R$ 450, fora a luz, que ficava entre R$ 250 e R$ 270", conta Daniel, que faz bicos na feira do bairro, vendendo frutas em um carrinho. Nesta sexta-feira, a sua esposa, Marta, de 22 anos, teve uma boa notícia que só renovou esperanças de um futuro melhor: começou a trabalhar como manicure em um salão. "O que a gente quer é ter um teto para colocar a nossa família e sem pagar aluguel. Tentar viver uma vida digna. A gente merece, nós trabalhamos para isso", assevera Daniel.

image Daniel: celular em troca de madeira (Igor Mota)

A luta do jovem Daniel é a de vencer mais de um leão por dia. Enquanto fala, sua história de vida faz lembrar a do personagem bíblico que lhe empresta o nome: o amigo do rei persa Dario - que sai ileso após ser jogado à cova dos leões.

Na passagem bíblica, o personagem Daniel justificava sua fé: "Deus mandou um anjo que fechou a boca dos leões". O Daniel da Marambaia, sem amigos poderosos, vendeu o próprio celular para fazer a casa onde vive hoje. Para fugir à sua cova particular - e seus leões cotidianos.

Ainda assim, o sono ainda não é tranquilo. Sempre há a possibilidade da Polícia chegar e desocupar a área. "A gente só quer um pedaço de terra para construir nossa casa". "É um terreno cheio de lixo, mosquitos, insetos. Pode aparecer cobra. É um risco que a gente ainda corre. Ainda não tem casa".

A pequena casinha, rodeada de lixo e insetos, preocupa o pai. Daniel teme que sua filha adoeça. A criança passa o dia na casa de uma outra pessoa da familia. Volta só à tardinha. "Ela é muito pequenininha para ficar comigo. E chora muito. Minha mulher tem mais jeito".

Na casa de Daniel só há um fogão, cama, geladeira e televisão. Ainda não há banheiro. "A gente faz as necessidades na casa da irmã dela [a esposa]. Quero deixar uma casa para a minha filha, para ela não passar o que a gente está passando", planeja Daniel. O investimento no sonho não o fez pensar duas vezes: vendeu seu celular a R$ 250. O dinheiro serviu para comprar a madeira da casa que ergueu no terreno.

BOLADAS NO TEMPO

Assistente administrativo de 24 anos, Bruno Gomes, mora de aluguel desde os 16. Nascido e criado no bairro da Marambaia, se juntou a colegas há poucos meses, em busca de moradia. Nas idas e vindas da vida, às vezes o destino prega peças: hoje Bruno vive no mesmo terreno onde antes jogava bola.

image Bruno: "Iluminar, conquistar para a comunidade, e ter casa própria" (Igor Mota)

E se transformar o mundo que se apresenta à frente parece uma ordem na luta de todos os dias, rebatizar, revirar a terra e transmutar o local - onde antes funcionava uma sede estadual do Sistema Nacional de Emprego (Sine) e a Defensoria Pública, em prédio depois abandonado aos ratos, ao lixo e ao uso de dependentes químicos - parece o mais justo e sensato a fazer.

"Essa área sempre foi usada apenas para o descarte de lixo e entulho. A gente está limpando. E quer iluminar e devolver esse espaço para a comunidade da Marambaia, com aulas de dança, por exemplo. A gente quer melhorar e conquistar nossa casa própria". Militante do movimento LGBT do Pará, Bruno diz ter fé em Deus que as famílias vão permanecer no terreno.

image Família Virgolino: crianças longe, à espera de regularização (Igor Mota)

SONHO

"A gente espera que o governo regularize aqui. A gente está aqui porque precisa", diz Rosivan Melo Virgolino, 30 anos, em tom de argumentação. Desempregado, Rosivan levou a família a uma das casas levantadas na Marambaia. "Somos eu, minha esposa e três crianças. Mas, como o lugar é pequeno, só uma filha está aqui, a de 5 anos", justificou. As outras crianças estão, por enquanto, com outros familiares. Antes, eles moravam de aluguel em Outeiro, pagando R$ 500. 

Viviane Magalhães Silva, 37 anos, também já está começando a arrumar sua nova casa, conquistada com o marido, Odinelson, 39. A autônoma também precisou deixar seus dois filhos morando com a avó nesse periodo novo. "Pretendo trazer eles pra cá quando eu aumentar aqui. Antes, a gente morava com a minha mãe, na Marambaia. A gente morava em um quartinho", conta. 

O acesso a uma moradia adequada foi reconhecido como direito fundamental ainda em 1948, após a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em 1988, foi garantido também pela Constituição do Brasil. Em seu artigo 6º, a moradia está assegurada como um dos direitos sociais de todo brasileiro - assim como a educação, a saúde, a alimentação e o trabalho.

Viviane lembra que os moradores do entorno tinham medo de passar por aquela área. Podiam sofrer algum tipo de violência. A luta pelo terreno na Marambaia mudou não apenas a percepção dos vizinhos sobre o terreno: transformou as próprias vidas das famílias que o ocuparam, com suas esperanças. "Somos 70 famílias. A gente quer que o Estado entre aqui para revitalizar, e a gente ter uma moradia decente, porque aqui tem muitas crianças", resumiu.  "O sonho de toda pessoa é ter o seu canto", sorri.

 

image Famílias temem retirada: "O sonho de toda pessoa é ter o seu canto" (Igor Mota)
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