Moradores em situação de rua planejam futuro após pandemia

Abrigados em escolas de Belém recebem alimentação, roupas e atendimentos médicos

Eduardo Laviano
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Quando um novo lockdown foi instituído em Belém para frear a pandemia de covid-19, em março de 2021, o governo do Pará retomou o funcionamento dos abrigos para moradores de rua na cidade.

Nesta segunda onda, quatro escolas da capital paraense substituíram a arena Guilherme Paraense na missão de recebê-los, divididos entre homens, mulheres, famílias e pessoas com sintomas de covid-19.

Telma Campos está morando com o filho Davi, de 25 anos, na Escola Estadual Dom Pedro II. Eles foram parar na rua no final de janeiro, após uma briga de Davi com o padastro. A mãe dele descreve a experiência como uma "tragédia". 

"A gente dormia no coreto da praça, vinha o guarda municipal e tirava a gente. Ia dormir na frente das [lojas] Americanas, tiravam a gente. Ia para a frente da Caixa Econômica, falei com o gerente e ele deixou. Mas a polícia vinha e batia, tirava a gente. É horrível, um terror", relata ela. 

image Telma está morando no abrigo junto com o filho Davi (Ivan Duarte/O Liberal)

A vida de Telma deu um giro de 180 graus em direção ao passado: em 1989, ela trabalhou como assistente social nas ruas, em um estágio que conseguiu logo após ser aprovada no curso de serviço social da Universidade da Amazônia (Unama).

"Naquela época a doença que assustava todos era a aids, que foi bem difícil quando surgiu. Mas essa é bem pior, pois ninguém quer te atender com medo do coronavírus. Você vai nas casas pedir água e não dão, batem a porta na cara. Acham que todo mundo da rua é marginal", lamenta ela.

Telma e Davi dependiam de doações nas ruas e tinham um trabalho no qual faziam suco de laranja para a barraca de um comerciante venezuelano. Mãe e filho estavam em um momento difícil da relação quando surgiu a oportunidade de ir para o abrigo.

Na falta de dinheiro para consumir substâncias ilícitas, ele estava "cheirando Thinner", como relata a mãe. Além disso, ela não gostava da namorada dele, uma transsexual que ela classificou "companhia nada legal, que batia nele, fazia ele se envolver em coisas erradas". 

Hoje, ela se sente agradecida por estar no abrigo, especialmente pelo filho estar saudável e bem cuidado. Atualmente, Davi e os demais moradores recebem quatro refeições por dia, dormem em colchões colocados no chão das salas de aula, recebem roupas e praticam esportes como futebol e damas. 

image Cercadinho improvisado com brinquedos doados é diversão das crianças no abrigo (Ivan Duarte/O Liberal)

Os abrigados, aproximadamente 40, também contam com assistência psicológica, atendimentos médicos e odontológicos. Eles passam o dia em um espaço comum da escola com diversas cadeiras e uma televisão. Há, ainda, um cercadinho improvisado com brinquedos para as cinco crianças que vivem por lá. 

"Quando começou a apertar a situação lá fora, que parou de ter alimento, resolvemos seguir o conselho da assistente social e vir. O pessoal que passava para dar alimento disse que ia parar", conta Telma. 

Quem explica o motivo das pessoas que doavam comida deixarem de distribuir alimentos na avenida Presidente Vargas é Rosângela Conceição. Ela está no abrigo desde fevereiro com o esposo, Eliézer Silva.

"Alguns pegavam a comida e vendiam ou trocavam por droga. Aí pararam de doar quando descobriram. Briga feia, até com sangue. A igreja dava o prato de comida, mas tinha gente que não sabia ficar quieto e vivia brigando", conta ela, ao lembrar que alguns moradores também trocavam ou vendiam os alimentos por drogas. 

image Rosângela saiu de casa pela primeira vez aos oito anos de idade (Ivan Duarte/O Liberal)

Diferente de Telma, Rosângela chegou às ruas muito nova, quando tinha ainda oito anos de idade, na "época do carnaval bom e da Fafá de Belém", segundo ela. 

Um dia, a mãe dela pediu que Rosângela levasse um copo de leite materno para o avô dela. Ela não entendeu bem o porquê, mas obedeceu.

"Ele disse 'senta aqui no meu colo' e eu sentei quando vi aquele negócio dele me coisando. Ele já tinha me bulinado. E eu gritando. Quebrei tudo. A mamãe bateu muito nele, os dois foram presos e eu fugi de casa", conta ela.

Após o trauma, a mãe de Rosângela chegou a encontrá-la na rua e a levou de volta para o lar, mas aos 12 anos ela se apaixonou por um rapaz que hoje ela avalia que não gostava nada dela. Quando a constatação de que as coisas não iam bem no namoro se deu, ela saiu da casa dele.

"Eu fiquei iludida pelo homem. Fui para a rua de novo. Até hoje eu sou arrependida por muitas coisas que a minha mãe passou por mim. Eu estudei, fiz meus cursos, tenho família, meus filhos. Tive três barrigadas de gêmeos. Depois da morte da minha mãe, não consigo ficar dentro da casa dela", desabafa.

Um amor que deu certo, por um homem que gosta dela de verdade, levou Rosângela para o abrigo. O marido Eliézer, que ela conheceu no início do ano, disse que não queria essa "vida de rua" para ela e, depois de muitas tentativas, convenceu ela a ir para o abrigo. 

Juntos, eles já fazem planos para quando deixarem a instalação do governo. Eliézer, que trabalhava pilotando máquinas e tratores, espera renovar a Carteira Nacional de Habilitação assim que possível. Rosângela também espera dias melhores para ambos.

"Eu não gosto de ficar parada, gosto de estar fazendo as coisas, de ocupar a mente. Não consigo ficar deitada. quando a pandemia passar, a gente quer sair para trabalhar. Não quero sair para morar na rua", conta ela, lembrando que já fez cursos de manicure e de cozinheira.

Telma tem o mesmo desejo, mas vê muita incerteza sobre o futuro do mercado de trabalho em Belém quando a pandemia acabar.

"Eu estou acostumada a acordar cedo e trabalhar. Não sei se a pandemia vai acabar agora. Lá fora, não havia emprego antes e agora está mais difícil ainda. Três anos atrás, até trabalhei como cuidadora de idosos. Já procurei muito emprego. A gente acessa, telefona e nunca tem vaga", conta. 

Apesar das dificuldades, Telma e Rosângela concordam que a rua fornece aprendizados únicos sobre a vida e de como lutar contra as adversidades de um cotidiano à margem da sociedade, repleto de preocupações que a maioria dos moradores de Belém que possuem um teto desconhecem. 

"A violência está muito grande na rua. Miliciano passando. Polícia também. uma vez a polícia pegou meu filho lá perto da estação das docas, jogou no camburão e largou lá na terra firme. sem um tostão. e tava todo mundo dormindo naquela praça lá perto e eles chegaram mandando levantar, revistaram. isso é humanidade?", questiona Telma. 

"Na rua, aprendi a sobrevivência e a convivência. E também que tudo muda de um dia para o outro. Um dia estamos em um lugar bom, no outro dia em um lugar ruim. A gente está de boa, quando vê alguém procura intriga e já tem que ir para outro lugar. Eu durmo hoje pensando: será que vou amanhecer viva?", reflete Rosângela. 

As doações de roupas, calçados, kits de higiene, roupas de cama e brinquedos para os abrigos são recebidas diariamente, das 8 às 18h, na Escola Superior de Educação Física, na Tv. Vileta, 2924, bairro do Marco. 

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