De 750, restaram 67 pessoas em situação de rua no abrigo do Mangueirinho

Seaster considera que medida de proteção dessa população, contra a covid-19, foi um interessante experimento social

Victor Furtado

O abrigo para pessoas em situação de rua, que funcionava no Mangueirão e agora funciona no Mangueirinho, será encerrado no dia 31 de agosto deste ano. Foi uma medida emergencial, para proteger essa população vulnerável da pandemia de covid-19. Tanto de adoecerem como de se tornarem vetores de transmissão. Já houve um pico de atendimento: 750 pessoas, o que é quase toda a população de rua estimada da Região Metropolitana de Belém, que seria de 1 mil pessoas, aproximadamente. Agora, restam apenas 67. Não houve registro de casos da doença lá.

Para Inocêncio Gasparim, titular da Secretaria de Estado de Assistência Social, Trabalho, Emprego e Renda (Seaster), o abrigo foi um experimento social muito interessante. Pode ser estudado na academia e como fonte de dados para formação de políticas públicas para a população em situação de rua. O espaço foi aberto no dia 22 de março, quatro dias após o registro do primeiro caso de covid-19 no Pará. Foi feita uma busca ativa, com dois ônibus, que conseguiram reunir 150 pessoas. Mais de 600 chegaram só pela troca de informações e a pé. Uma rede social bem eficiente.

Todas essas pessoas formavam um círculo social muito diverso e conflituoso, aponta Inocêncio. Era um reflexo das ruas, onde a territorialidade e a luta por sobrevivência levam a comportamentos defensivos ou agressivos. O atendimento inicial, sobretudo a tantas pessoas, não foi fácil. O trabalho só para organizar as coisas, às vezes, começava às 7h e só terminava depois das 22h. Atualmente, há servidores e colaboradores em turnos que cobrem 24 horas por dia.

Grande parte dos problemas, diz o secretário, ocorria por consequência de sintomas da dependência química. Num levantamento interno, de 70% a 80% dos atendidos sofria com o vício. Isso gerou uma série de problemas de segurança, como visitas suspeitas de pessoas que poderiam estar levando drogas. O afastamento de colaboradores foi necessário. Um dos fenômenos mais interessantes registrados foi quando todos resolveram se organizar.

"Fizeram uma assembleia própria, na terceira semana, e determinaram que ninguém mais poderia entrar. Quem saísse, não poderia voltar. Isso porque chegamos a essas mais de 700 pessoas em menos de uma semana. Resultados do trabalho de sociabilidade interna que fizemos, junto com alimentação farta, roupas e materiais de higiene — foram muitas doações — atendimento médico básico e com ajuda de algumas pessoas de uma ONG que já conheciam muitos deles", disse Inocêncio.

Só que o confinamento acabou sendo muita pressão para alguns, que quiseram voltar às ruas. Para isso, era preciso assinar um termo de responsabilidade. Gradativamente, as pessoas começaram a sair. De 381 desligamentos, 109 retornaram para as famílias — esse contato foi restabelecido com ajuda dos trabalhadores do abrigo —  e outros 272 retornaram para a rua porque queriam mesmo.

Outros foram saindo por motivos diversos. Alguns conseguiram o auxílio emergencial do Governo Federal e até conseguiram pensar em como se restabelecer socialmente. Desses, houve quem se juntou e alugou uma quitinete e formou uma nova família.

Há 20 dias, havia 129 pessoas no abrigo. Até esta sexta-feira (31), eram 67. Por isso, dia 24, o espaço final foi movido para o Mangueirinho. Até porque, neste final de semana, já haverá os primeiros jogos do Parázão no Mangueirão. Em Santarém, havia um abrigo também, mas com 70 pessoas e a prefeitura assumiu essas pessoas nos abrigos municipais. Os municípios é que têm recursos e responsabilidades para centros de acolhimento e apoio a pessoas em situação de rua.

Desses 67, aponta a Seaster, 32 se autodeclaram livres ("limpos") da dependência química e serão qualificados para o mercado de trabalho. Um deles, inclusive, já foi contratado. "A Kapa Serviços Gerais, faço questão de divulgar para estimular que outras empresas façam isso, fez uma contratação do pessoal de lá do abrigo", comenta Inocêncio. Outros 35 pediram apoio para tratamento da drogadicção e será garantido pelo Estado.

Todas essas pessoas serão realocadas, depois do dia 31 de agosto, para outros abrigos já existentes, sejam municipais ou estaduais, que melhor atendam aos  perfis e necessidades. A Seaster tem dois abrigos de idosos e cinco para mulheres ameaçadas. Havia dois para indígenas da etnia venezuelana Warao, mas a prefeitura assumiu essa responsabilidade e essas casas serão pontos de passagem e apoio a migrantes e imigrantes no futuro.

"Essa experiências mostram que dá para devolver a dignidade dessas pessoas e reinserir na sociedade, nas famílias, no mercado de trabalho. Mas sem a dependência química. Isso agora se liga a outras políticas públicas que esperemos que sejam desenvolvidas: habitação popular, programas sociais de renda, saúde... estamos buscando um projeto de habitações populares para população de rua ou pessoas em submoradias. Por enquanto, temos pessoas saindo com um outra imagem: mais sadias, confiantes, bem tratadas e com esperança. Ainda temos 67 vidas para cuidar", concluiu Inocêncio.

 

Histórias diversas encontram possibilidades de novos capítulos

 

No levantamento de perfis, a Seaster conseguiu identificar muitas pessoas com histórias de vida surpreendentes. Muitas coisas levam uma pessoa a vagar pelas ruas. Transtornos mentais, quebra financeira, brigas familiares, desilusões amorosas, desemprego e também a dependência química. Por isso, entre os muitos perfis encontrados havia várias pessoas com graduação e pós-graduação e talentos diversos. Entre alguns dos personagens mais inusitados havia um agrônomo e um médico. Já não estão mais lá.

Leonildon Ferreira, ou "Leo Arte", faz desenhos e pequenos artesanatos diversos, com personagens do mundo nerd / geek. Consegue fazer protetores de canetas e lápis e até desenhos em tampas de quentinhas de isopor. Recorda que a bebida foi o que acabou o levando para a rua quase que permanentemente, apesar de morar com a irmã. Vendia a arte dele e seguia e ficava emendando dias. No abrigo, começou a recuperar a esperança.

"Estava quebrado três vezes: fisicamente, psicologicamente e espiritualmente. Já fiz amigos, bebido só água... tô bem alimentado e até engordei um pouquinho. Dá uma vontade de sair, de vez em quando e dar uma volta. Mas gente a precisa se proteger, né? Daqui pra frente, só coisa boa. Quem sabe montar uma lojinha?", comentou.

Os profundos olhos castanhos e tons de mel que a máscara permite ver, contam uma história de dor e esperança Jefferson Fernando Silva Costa, de 25 anos, lembra que chegou ao local por vontade própria. Diz que no abrigo teve como avaliar e pensar na própria vida, que contou ser desregrada. Lembra que dormia em praças e em locais que ele recorda ser "uma merda".

"Não tem horário para dormir, acordar, comer, nada. Aqui eu tive tratamento médico, que eu não tinha lá fora. Descobriram que eu estava com tuberculose. Eu poderia ter morrido lá. Fora. Aqui eu penso em estudar, trabalhar... a profissão da segurança, do militar, do policial me persegue. Acho bonito e gostaria de fazer. Estou batalhando para estudar e terminar meus estudos", relata Fernando. Ele não completou o ensino fundamental. Retomou o contato com a família e está feliz, esperando o retorno ao lar.

Vanderson Austragésilo Silva de Ataíde, de 31 anos, desenvolve diversos tipos de desenhos e ilustrações e artesanato. Desde os 5 anos de idade, já desenhava e pintava. Faz artesanato em isopor, painéis, xilogravura, serigrafia, pirografia... atualmente, faz algumas caricaturas de colegas de confinamento do abrigo. "Tento expressar a personalidade de cada um. Gostaria de fazer uma exposição no Centur com todas essas histórias", disse.

Mike David, de 44 anos, é um viajante, como prefere se identificar. É natural de Uberaba, Minas Gerais. Como andarilho, já passou por Maranhão, Ceará, Rio de Janeiro, São Paulo, Tocantins e Goiás. Estava no Pará quando a pandemia se instalou. "Esse abrigo caiu do céu. Se estivesse na rua agora, com a pandemia, estava passando fome. Não ia vender nada", comentou. Ele faz costuras diversas e artesanato com linha. "O que puder ser trançado em linha e tricô eu faço".

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Belém
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